Fernando Perlatto*

A notícia publicada em maio deste ano sobre o Prêmio Camões concedido a Chico Buarque não surpreende ou, pelo menos, não deveria surpreender. Diferentemente de outros prêmios literários da língua lusófona que concedem láureas a lançamentos de obras individuais recentes – a exemplo do Prêmio Oceanos ou do próprio Prêmio Jabuti, do qual Chico já foi finalista e vencedor com Budapeste e Leite Derramado –, o Camões é uma honraria que privilegia a obra do autor, concebida a partir de uma perspectiva mais ampla. Nesse sentido, não importa se esta é quantitativamente significativa ou não – a exemplo da premiação de Raduan Nassar, autor de apenas dois grandes romances e alguns contos –, mas interessa sim saber se esta obra deixou legados mais amplos para a língua portuguesa.

A considerar por esta perspectiva, a premiação à obra de Chico – quer se considere o compositor, quer se considere o romancista ou o dramaturgo – não deveria causar qualquer estupor. Estamos a falar de uma produção que, em seu conjunto, se destaca pela riqueza poética, pela potência lírica, pela enorme capacidade em destrinchar e expor de modo complexo tensões, dilemas e contradições políticas e sociais do país.

Até mesmo pela importância e pela enorme diversidade de composições, a obra do letrista acabou por suplantar de forma muito desigual a do romancista e a do dramaturgo. Nada mais natural. Em qualquer conversa com amigos, será difícil encontrar um consenso em torno das músicas mais geniais de Chico. São várias, para todos os gostos e tipos; para os mais variados momentos, cenários, situações.

A faceta de escritor de Chico é menos conhecida e explorada pela bibliografia do que a do compositor. Como dramaturgo, Chico escreveu as peças Roda Viva (1968), Calabar, com Ruy Guerra (1973), Gota d’água, com Paulo Pontes (1975), e Ópera do Malandro (1979). Já como romancista, Chico publicou, além de Fazenda modelo (1974), as obras Estorvo (1991), Benjamin (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009) e O irmão alemão (2014).

É possível lançar um olhar mais acurado para estas cinco últimas obras da maturidade de Chico Buarque e tentar construir uma interpretação analítica que identifique alguns aspectos mais gerais de sua imaginação literária.

Pode-se dizer que Estorvo e Benjamin, os primeiro romances desta fase mais madura do escritor, são os livros mais difíceis de Chico. Com este adjetivo quero me referir ao fato de que, diferentemente dos romances posteriores, estes têm enredos menos claro, situações pouco evidentes e uma escrita permeada, de alguma forma, pelo universo da estranheza becktiana. Poderia ser inserido no campo da “literatura de esquerda”, como pensada pelo crítico literário argentino, Damián Tabarovsky. Seus protagonistas, os demais personagens que aparecem na obra, os cenários, as situações, enfim, a totalidade dos elementos que cercam as narrativas estão, todos eles atravessados por uma aura desta estranheza. O narrador consegue imprimir um determinado tom que traz para o centro do romance cenas banais, contadas como que acontecimentos aparentemente corriqueiros, mas que se mesclam à lógica do absurdo, do ilógico, do disparatado.

A despeito de manter a forma clássica e consagrada dos romances tradicionais, sem maiores experimentalismos, Estorvo e Budapeste, possuem estruturas menos óbvias que as demais obras do autor. Parecem quase que livros à parte do restante de sua produção. Estão arquitetados sobre as bases de roteiros pouco evidentes, mais ziguezagueantes, espiralados. É curioso pensar que justamente em seus dois primeiros romances de maior fôlego, Chico – um compositor já consagrado no início dos anos 1990 – tenha se arriscado tanto, construindo uma obra que, ainda que resvale em certa ostentação gratuita de virtudes literárias, se mostra complexa, densa, envolvente.

Budapeste, a terceira obra desta fase madura, é o romance de Chico Buarque no qual a linguagem assume o papel de protagonista. A preocupação com a palavra, o cuidado com os termos, o zelo com o acabamento, o trato atento com as expressões são marcas que atravessam toda a escrita buarquiana. Mas em Budapeste estas características ganham ainda mais relevo. Isso se dá, em grande medida, pelo próprio fato de o enredo do livro ser centrado na busca obsessiva do narrador, José Costa, um escritor, ghost-writer, para aprender um novo idioma, o húngaro, “única língua do mundo que, segundo as más línguas, o diabo respeita”. O livro se estrutura em torno desta batalha quase que invencível do protagonista com a linguagem. Chico Buarque constrói um universo no qual tudo gira em torno das palavras; a palavra seduz e afasta; aproxima e distancia; é a condenação e a salvação.

Em uma resenha publicada quando Budapeste foi lançado, José Miguel Wisnik chamou a atenção para o fato de este ser um romance do duplo, no qual “o escritor é um duplo de si mesmo, por excelência e por definição, aquele que se inventa como outro e que escreve, por outro, a própria obra”. A aceitar essa leitura, Chico pode ser inserido em uma linhagem de escritores que exploraram o tema do duplo na literatura, como Beckett, Dostoievski, Pirandello, Sebald e Saramago, aspecto muito bem analisado por Cláudia Maria de Vasconcelos, em seu livro Samuel Beckett e seus duplos (Iluminuras, 2017).

De fato, este parece ser o elemento mais interessante desta obra, qual seja, a forma como o narrador brinca com a dinâmica do duplo, explorando aspectos variados, como duplicação do personagem, da obra e do próprio autor. Os duplos José Costa e Zsoze Kósta, os idiomas português-húngaro, as cidades Rio-Budapeste, os cartões postais Guanabara-Danúbio, as mulheres Vanda-Kriska, os filhos Joaquinzinho-Pisti, as comidas sopa-pães de abóbora, a relação entre anonimato e popularidade, as condições de ghost writer e best-seller, e, enfim, o próprio livro Budapeste, escrito por Chico Buarque, e a obra Budapest, que recebe a autoria de Zsoze Kósta, todos estes duplos vão se articulando de forma intrincada e bem arquitetada, dando o tom da narrativa.

Seis anos após a publicação de Budapeste, Chico Buarque lançou seu novo romance, Leite derramado. É interessante perceber que este é o livro que traz de forma mais explícita alguns dos temas fortes do repertório musical buarquiano, relacionados à exposição dos autoritarismos e preconceitos vários que estruturaram historicamente a formação do país. Muitos críticos, como Roberto Schwarz, em seu artigo “Cetim laranja sob fundo escuro”, publicado no livro Martinha versus Lucrécia (Companhia das Letras, 2012), destacaram o papel do narrador buarquiano que emula o ciumento Bentinho de Dom Casmurro. Tal qual Bentinho em relação a Capitu, o narrador Eulálio d’Assumpção, que conta suas memórias do leito de um hospital, é tomado pelo ciúme doentio e pelas dúvidas em relação à esposa e a suposta traição de Matilde.

Mas, para além de Dom Casmurro, é possível pensar na relação de Eulálio com o Brás Cubas de Machado. Se em Memórias póstumas de Brás Cubas o narrador expõe, a partir de um olhar refinado, as contradições da sociedade escravagista da segunda metade do século XIX, em Leite derramado, Eulálio explicita as tensões e incongruências de um Brasil em permanente e profunda mudança nos séculos XX e XXI. Nos dois casos, cada qual à sua maneira e em seu contexto, Machado de Assis e Chico Buarque, pelo olhar dos seus protagonistas, Brás Cubas e Eulálio, trazem para o leitor o olhar particular da “casa grande”, evidenciando as opressões que organizam a sociedade de classes no país, mantendo historicamente sua estrutura precária e desigual.

Nas memórias incertas, embaralhadas e cheias de rodeios, de idas e vindas, de Eulálio d’Assumpção, “lembranças de lembranças de lembranças”, vemos o desenrolar da história do país, os supostos “méritos” da classe dominante – “eu não tinha dúvida de que para mim, a porta certa se abriria sozinha” –, as transformações ocorridas no âmbito da elite brasileira e nas suas formas de dominação, e a decadência de uma família patriarcal, que vai dilapidando seus recursos ao longo do tempo, mas que luta desesperadamente pela manutenção do seu status. Partindo do século XV, passando pelo trisavô que desembarcou no país com a corte portuguesa, pelo avô, “figurão do Império”, que “queria mandar todos os pretos brasileiros de volta à África”, até chegar ao pai, senador da Primeira República, os Assumpção são cantados em verso, prosa e lamento por um Eulálio, que mescla rabugenzice com um humor refinado.

Ainda que tendo um fim melancólico para alguém que se considerava dotado de uma condição superior, vivendo de favor com a filha “numa casa de um só cômodo nos cafundós”, “num endereço de gente desclassificada”, o narrador não perde a arrogância, a presunção, a soberba. Eulálio é racista da maneira mais inescrupulosa que setores das classes dominantes, mas também médias, são no país: “garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor”, “uma pretinha que era quase da família”; “tampouco contra a raça negra nada tenho”. Com Leite derramado, Chico expõe de forma irônica e aguda o patético da condição de uma setor da classe dominante brasileira que agoniza, mas que não quer deixar esvair sua condição de mando.

O último livro de Chico Buarque, O irmão alemão, é uma obra que tem como marca principal a mistura do real com o imaginário. Ainda que não possa ser situada plenamente no território da autoficção, a obra articula de forma muito complexa memória e literatura, desenhando um quadro bem erigido, que deixa o leitor confuso entre o que é verdadeiro e o que é imaginado nas situações narradas. Arquitetado a partir de um humor ácido, o grande achado do livro reside na utilização de fatos reais – com destaque para a relação estabelecida em Berlim entre seu pai, Sergio Buarque de Holanda, chamado no livro de Sergio de Holander, com a alemã Anne Ernst, que resultou no nascimento de um irmão alemão – com doses excessivas de imaginação. O narrador, Francisco de Holander, alter ego de Chico, constrói a narrativa de tal maneira, que vai tornando bastante entrelaçado e sofisticado o jogo entre realidade e ficção.

A literatura ganha papel de destaque em O irmão alemão. Livros e autores diversos se fazem presentes em toda a narrativa. Padre Antonio Vieira, Camões, Cervantes, Gogol, Camus, Dostoievski, Kerouac, Marques de Sade, Maiakovski… eles aparecem não apenas nas memórias sobre a biblioteca do pai, Sergio de Holander, mas também em diferentes situações nas quais o narrador se envolve, como espécies de fios condutores de uma narrativa que se ergue quase que sob a lógica do onírico.

E nessa lógica do onírico se destaca uma das principais características de O irmão alemão. A obra é todo ela construída como uma sequência de possíveis cenários, de possíveis situações, de possíveis trajetórias, como se a ideia do se conduzisse e guiasse, ainda que de forma cambaleante, a sequência do enredo. O escritor brinca o tempo todo, elucubrando cenários e possibilidades variadas que poderiam ter acontecido na vida de seu pai, Sergio de Holander, de Ann Ernst, de seu irmão alemão, e de sua própria vida, caso alguma coisa diferente tivesse ocorrido. Em uma escrita borgiana, tal como em um sonho, uma imagem, uma palavra, conduzem a uma situação nova, diversa, como a evidenciar o fator do imponderável, do fortuito, do acaso, que parece reger os transcursos das vidas dos personagens da obra.

Quando da divulgação da premiação do Camões para Chico Buarque, não foram poucos aqueles que a relacionaram com o prêmio Nobel de Literatura recebido por Bob Dylan. Não considero, contudo, pertinente a comparação. Ainda que o compositor americano tenha produzido trabalhos relevantes na ficção – destacando-se aí o ótimo Tarântula (lançado originalmente em 1971, mas traduzido no Brasil em 2017 pelo selo Tusquets, da Planeta) –, é possível dizer que suas composições musicais foram muito mais importantes para a sua premiação no Nobel do que sua obra literária.

Não restam dúvidas de que os jurados do Camões também colocaram peso enorme nas composições de Chico para conferir-lhe a premiação. Mas, é preciso reconhecer que o Chico romancista tem um peso muito maior do que o Dylan literato. Sua obra literária, que mescla apuro linguístico, ritmo, poesia e humor com uma visão ácida sobre as tensões e contradições históricas do país permite conferir uma autonomia ao Chico romancista. Reconhecer isso é valorizar o fato de que sua obra ficcional ocupa um lugar de merecido destaque na produção da literatura brasileira contemporânea.

* Fernando Perlatto é um dos editores da Revista Escuta.