Renato Francisquini*

Em junho de 2013, no auge dos movimentos de rua que, em vários sentidos, abalaram a sociedade brasileira, a brilhante Laerte publicou uma charge em que vaticinava: a grande ficha, em algum momento…ela vai cair. Sem que o suspeitássemos, a serpente botara o ovo que seria chocado por muitos. No ano seguinte, questionou-se o resultado das eleições presidenciais (“só pra encher o saco do PT”, segundo Aécio Neves)[1] e a Operação Lava-Jato intensificou a sua rotina de abusos, que culminou no golpe parlamentar de 2016 e na ascensão de um vice sem legitimidade, vítima do mesmo ardil que o levou ao poder[2].

A criminalização da política seguiu o seu curso e, cinco anos depois, a ficha de Laerte ainda pairava no espaço quando elegemos para a presidência da República um ex-capitão que fora expulso do Exército por planejar explodir bombas em quartéis[3]. As suas credenciais eram fartamente conhecidas, embora tenha sido, por 30 anos, um parlamentar pífio. Para o bem do nosso fígado, tão exigido nesses tempos de quarentena, não vale a pena enumerar as tantas ocasiões em que o sujeito que ora ocupa o Palácio do Planalto e a sua família evidenciaram o seu desapreço pela democracia e pelas instituições do Estado de Direito, desde muito antes do processo que, lamentavelmente, o elegeu para o cargo político mais importante do país.

Steven Levistky e Daniel Ziblatt, em “Como as democracias morrem”, publicado no Brasil em 2018, enumeram quatro indicadores do comportamento autoritário. São eles: (1) rejeição das regras jogo democrático; (2) negação da legitimidade dos oponentes políticos; (3) tolerância ou encorajamento à violência; e (4) propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia. Deveríamos rejeitar, no processo eleitoral, lideranças que apresentassem qualquer um destes elementos. Não dois, três ou quatro. Em algum momento, talvez, seja o caso de revisitar editoriais e artigos de opinião do período que antecedeu o desastre eleitoral, ou mesmo os que foram publicados no primeiro ano de governo, para entender como o personagem autoritário foi normalizado perante a opinião pública. Além do famigerado editorial em que o Estadão afirmava se tratar de uma “escolha difícil”[4], o secretário de redação da Folha de São Paulo, Vinícius Mota, vedou aos jornalistas o uso do termo “extrema-direita” para se referir ao então candidato[5]. A ficha ainda não havia caído, alguém poderia dizer.

Ao contrário do que faz parecer parte da imprensa, que demonstra agora surpresa com os discursos e ações antidemocráticas de Bolsonaro e família, a sua história, bem como as suas promessas de campanha, apontavam indiscutivelmente nessa direção. Como tem salientado Celso Rocha de Barros[6], Bolsonaro não pode ser acusado de estelionato eleitoral. Desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019, tudo o que esteve ao alcance de suas decisões monocráticas foi feito para cumprir as suas promessas de desmontar as instituições democráticas e os padrões mínimos de convivência entre pessoas que discordam profundamente em questões delicadas, como religião e política. Por meio de decretos ou de outros instrumentos autocráticos de gestão, pretendeu flexibilizar o porte de armas, intervir em universidades e institutos federais, acabar com a fiscalização ao limite de velocidade nas estradas e inviabilizar os órgãos de proteção ao meio ambiente. Na reunião ministerial de 22 de abril deste ano, Bolsonaro e seus comparsas apostam na distração causada pelas mortes de milhares de brasileiros em decorrência da pandemia do novo coronavírus para seguir adiante em seus nefastos intentos. Fala-se em passar a boiada pela Amazônia, armar milícias contra os seus adversários políticos, vender o Banco do Brasil, entre outros despautérios. Decisões que não careceriam de justificação pública, pois seriam a representação de uma vontade geral encarnada na figura do líder messiânico.

Contamos 30 mil mortes pela Covid-19 no Brasil. O sistema de saúde, em vários estados, entrou em colapso ou segue a passos largos nessa direção. A inépcia e a crueldade do governo Bolsonaro e sua equipe econômica para lidar com a crise decorrente da pandemia agravam, e muito, a situação, ao ponto de a revista britânica Lancet afirmar em editorial que o presidente representa a maior ameaça ao país no combate à pandemia. Enquanto empilhamos caixões em covas rasas, o mito debocha da realidade, manda a imprensa calar a boca e intervém sobre a Polícia Federal que, segundo ele, tentava f… com a sua família e os seus amigos milicianos. Paulo Guedes, por sua vez, intensifica o esforço para destruir o Estado, dificulta a concessão de um insuficiente benefício para a parcela mais pobre da sociedade e, ao lado de empresários peladões e irresponsáveis, pressiona os governadores pelo fim das medidas de isolamento social. Até o momento, a única ação proposta por Bolsonaro para o combate à epidemia foi a receita de um emplastro cuja ineficácia vem sendo comprovada repetidamente em testes laboratoriais, que atestam, ao contrário, o aumento do número de mortes em decorrência de sua administração[7]. Dois ministros da Saúde foram defenestrados por não acatarem a ordem do autocrata que ora ocupa o cargo de presidente da República. A parcela mais carente da sociedade, como é comum em nosso país, tem sido a mais atingida. A dor de tantas Joanas de tal está aí, para quem quiser ver, diariamente, estampada no jornal.

O diagnóstico comum até o início deste ano sustentava que, apesar do palavrório presidencial, havia atores e instituições que impediriam uma escalada autoritária. Destacavam-se, nesse rol, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, o grupo de militares no Planalto, o Congresso, o Ministério Público e as Cortes. O histórico de Moro como juiz e mesmo o fato de ter aceitado o convite para compor o governo seriam razões suficientes para duvidarmos de sua intenção de impor limites ao ridículo tirano. O ex-juiz e agora ex-ministro tornou-se, para todos os efeitos, carta fora do baralho. Os generais apijamados não têm atuado senão para ameaçar quem se opõe à arbitrariedade do presidente e para intensificar o sentimento de que vivemos a iminência de uma drástica ruptura do que ainda nos resta de democracia. As instituições, por ora, seguem abertas e mimetizam um clima de normalidade. Uma normalidade que é obviamente mera aparência, pois, quando nos questionamos permanentemente sobre qual seria a posição do aparato coercitivo do Estado em face de uma decisão corriqueira de legisladores e juízes, fica evidente que nos encontramos sob tutela da força. Não me parece ser coincidência que a despeito do acúmulo de crimes de responsabilidade não se fale a sério, seja no Supremo, seja no Congresso, a respeito do afastamento desse grupo de facínoras. Ou será que a ficha ainda não caiu?

Em 2018, muitos de nós fazíamos um apelo ao bom senso das lideranças democráticas e da sociedade para impedir a ascensão de Bolsonaro ao poder. Estava claro que, uma vez investido do cargo, seria improvável conter o seu avanço sobre as liberdades democráticas. Os resultados da irresponsabilidade dos muitos que desconsideraram a ameaça representada pelo ex-capitão e seus aliados eram previsíveis. As consequências de sua presidência para o que ainda há de democracia no Brasil, como alerta o ministro-general Heleno[8], já não o são. Ao contrário do que sugere o governo, a democracia não é apenas um método para a escolha do presidente da República, que passaria, então, a desfrutar de poderes ilimitados. A democracia envolve corpos legislativos, tribunais independentes e a livre expressão de ideias. Os novos autoritarismos, como atesta hoje farta literatura na ciência política, ao contrário de seus pares que emergiram nos anos 1960 e 1970 na América Latina, não atravessam a soleira de nossas portas com tanques e fuzis, destituindo os governos eleitos e assassinando os que se lhes oferecem resistência. Donald Trump, Viktor Orban e Jair Bolsonaro se imiscuem nas regras do jogo político e desconstroem a arquitetura democrática e as instituições de controle de forma mais ou menos sutil. Nesse contexto, parece que a ficha não vai cair nunca.

Porém, se quisermos evitar um morticínio ainda mais tenebroso do que o que estamos acompanhando, com cerca de mil óbitos diários e o desespero das famílias que não podem se despedir de seus entes queridos, é preciso parar Bolsonaro e o seu governo de ineptos. Se as instituições democráticas, como a imprensa e os poderes Legislativo e Judiciário, não quiserem dar razão aos que, no governo e nas hordas que o acompanham, pretendem afirmar a sua insignificância, urge levar a sério o impedimento do grupo que age por todos os meios de que dispõe para destruir o único regime político em que tais instituições têm razão de existir. À sociedade civil e aos partidos políticos democráticos, à esquerda e à direita, cabe, por um momento, colocar em segundo plano o que os divide, e contribuir para a reconstrução da democracia. A ficha, a grande ficha, em algum momento, precisa cair.

* Renato Francisquini é Professor Adjunto do Departamento de Ciência Política da UFBA e colaborador da Escuta.

**A  imagem é da autoria da Laerte e foi publicada em diversos jornais. A atual versão foi publicada em https://jornalggn.com.br/humor/a-grande-ficha-por-laerte/

Notas

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/29/opinion/1535573232_439295.html

[2] https://g1.globo.com/politica/noticia/veja-trechos-da-conversa-entre-temer-e-joesley-que-foram-recuperados-pela-pf.ghtml

[3] https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2019/07/31/aversao-de-militares-a-imprensa-ajudou-a-absolver-bolsonaro-em-1988-diz-autor-de-livro.ghtml

[4] https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-escolha-muito-dificil,70002538118

[5] https://revistaforum.com.br/comunicacao/folha-proibe-jornalistas-de-usar-termo-extrema-direita-para-se-referir-a-bolsonaro/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2019/07/escalada-autoritaria.shtml

[7] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/oms-suspende-estudo-com-hidroxicloroquina-para-avaliar-seguranca.shtml

[8] https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azevedo/2020/05/22/nota-do-general-heleno-e-obviamente-golpista-nao-ha-leitura-alternativa.htm