Jorge Chaloub*

O ato de nomear não é ingênuo. A escolha das palavras implica em tomadas de posições e produz heranças mais longevas do que o tempo gasto para pronunciá-las. Se a política é, por um lado, atravessada pela divisão de recursos, ela também se constitui por meio de narrativas e disputas de sentido, que importam não apenas para os registros posteriores, muitos deles condenados ao mofo das bibliotecas, mas influem diretamente no desenrolar dos eventos. Disputas políticas são também embates por representações do mundo, as quais decorrem do acúmulo de afirmações, cuja irrelevância isolada se converte, através da reiteração, em acontecimentos dignos de nota.

O conturbado cenário político dos últimos tempos teve na adoção, por parte de alguns atores, de termo golpe um momento central. A afirmação pública, por parte de diversos atores políticos, de que estamos diante de um movimento golpista deu novas feições à conjuntura e, mesmo em caso de derrota no domingo, tende produzir frutos em um futuro próximo. Os comentários difusos sobre as estranhas feições do processo em curso não apenas ganharam corpo e unidade – de modo que se produziu uma narrativa contrária à avalanche dos superficiais discursos anticorrupção da imprensa – como apontaram a possibilidade de novos eixos, ainda imprecisos e parcamente explorados, para o debate político.

O reconhecimento do golpe traz ao centro do debate público a democracia construída sobre os escombros da ditadura e formalizada pela Constituição de 1988, a qual vivencia, no presente momento, um dos seus mais difíceis momentos. As reflexões retornam, desse modo, à própria política, compreendida como instrumento propício para a construção do comum e ferramenta crítica à parcialidade de campos supostamente neutros, os quais revelam, aos primeiros olhares mais atentos, seu caráter interessado, como é o caso da economia e do direito. O debate, outrora colonizado pelos imperativos de supostas técnicas neutras, agora expõe seus lados de forma mais explícita.

A denúncia do golpe tem sido desqualificada como simples defesa interessada de um dos lados em disputa, o que de fato o é. A questão é que esse lado, diferente das versões vulgares da crítica, não é composto por “petistas”, rótulo que explica pouco as feições atuais da esquerda brasileira, mas por aqueles que percebem que há em movimento um ataque não apenas aos princípios da democracia formal, violados com o afastamento da presidente sem crime de responsabilidade e a grotesca condução do processo na Câmara, mas uma clara afronta a muitas das conquista da democracia social consagrados em 1988, como os direitos trabalhistas e as liberdades de organização e manifestação. Nesse sentido, o golpe tem pouca relação com o regressivo governo do PT, mas antes aponta para as conquistas da ordem democrática.

A democracia não precisa de levantes militares para perecer, ou se vê ameaçada apenas quando há total desprezo por qualquer tipo de procedimento legal. Os golpes contemporâneos podem perfeitamente prescindir de tanques, como o caso paraguaio bem demonstra, e frequentemente recorrem às manobras de parlamentos que antes representam interesses específicos do que respondem aos que neles depositaram seus votos. Os juristas por outro lado, já conferiram verniz a não poucos ataques a ordem democrática. A preocupação dos protagonistas de 1964 – com todas as diferenças em relação ao presente momento – em legitimar o regime autoritário nascente através de preceitos jurídicos, inclusive com o recurso à então falecida Constituição de 1946, através da farsesca declaração de vacância da presidência, servem como instrutivo exemplo. Em um Estado democrático, os procedimentos jurídicos não podem servir a manobras de bastidores destinadas a produzir benefícios declaradamente corruptos, tal como as conduzidas pelo presidente da Câmara, mas retiram sua legitimidade das finalidades públicas às quais se propõem.

Criticar o golpe não importa adesão ao governo, nem implica em engrossar a estéril polarização, que marcou o prefácio da sanha golpista, mas foi nos últimos tempos abandonada por um embate mais concreto, amparado na direta afronta a preceitos democráticos presentes no, já conhecido, plano do governo do outrora “vice-decorativo”. Como já dito, o movimento abre possibilidades da construção de novos caminhos à esquerda, que, para alcançarem sucesso, não podem se limitar ao rebaixado horizonte atualmente proposto pelo Partido dos Trabalhadores. Faz-se necessário defender um conceito de democracia que vá além do ato de votar periodicamente e aponte para lacunas inaceitáveis da nossa ordem política, como, por exemplo, o reiterado desrespeito à Constituição nas periferias brasileiras, onde direitos individuais básicos, a até mesmo a vida, são constantemente ignorados. Estes necessários avanços não prescindem, entretanto, da defesa da vontade popular expressa nas urnas, a qual se encontra, atualmente, diante de franca ameaça. Nesse sentido, resistir ao golpe é fundamental para garantir a plena implementação da ordem democrática. Se qualquer previsão soa precipitada em tempos tão turbulentos, é certo que a única saída passa por uma mobilização popular que impeça as restrições de direitos e a criminalização de movimentos populares, vislumbradas num horizonte próximo.

*Jorge Chaloub é um dos editores da Escuta.

**Crédito de imagem: AP Photo. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2013-09-11/chile-relembra-40-anos-do-golpe-militar-em-meio-a-resgate-do-legado-de-allende.html Acesso em: 16 abr. 2016