João Dulci*

Há alguns anos, lá pelos idos de 2011, numa reunião com meu orientador Adalberto Cardoso, lhe dirigi uma pergunta ingênua, como eram muitas: se as indústrias automobilísticas ganham tanto mais dinheiro no mercado financeiro (em torno de 80% do rendimento bruto), por que elas ainda produzem carros. Sua resposta simples, mas elucidativa, resumia-se em duas razões: porque as pessoas ainda querem comprar carros, e porque sem fabricar carros, a Ford, a Fiat ou a Marussia Motors não eram a Ford, a Fiat e a Marussia Motors.

Guardei essa resposta e compartilhei, dando os devidos créditos, com os alunos, sempre que lecionei disciplinas relacionadas a trabalho ou economia. Para minha surpresa, a reação é sempre parecida com a minha. Um misto de espanto do tipo “nunca havia pensado nisso”, com um “claro! É verdade” e, obviamente um “por que raios ele está falando sobre isso?”.

Pois bem. Semana passada saíram os resultados da indústria brasileira em 2019. Queda de 1,1% na produção industrial. Poucos dias depois, a notícia de que o índice de confiança do empresário industrial brasileiro havia subido, atingindo o maior patamar de sua história recente (CNI, 23/01/2020). O índice apresenta um curioso comportamento em suas curvas, iniciando janeiro sempre em alta e declinando nos meses seguintes, para ganhar um sopro de hélio nos meses finais de cada ano. A Confederação Nacional da Indústria explica que quanto mais alto o índice, mais compartilhada é a confiança entre os empresários. Se o índice se apresenta abaixo de 50 pontos (a escala varia de 0 a 100), é sinal de que a confiança está baixa e concentrada apenas em alguns setores. Entre janeiro de 2014 e janeiro de 2017, o índice esteve abaixo de 50 pontos, subindo a partir daí. O atual patamar é o maior desde 1999, quando se inicia a série divulgada. A Fundação Getúlio Vargas compila dados semelhantes, com expectativas parecidas.

Independente do índice que tomemos por base, é curioso o otimismo de um setor que apresenta comportamento declinante há quatro anos. Se considerarmos o valor adicionado bruto, deste 2013 seus números são negativos na média do setor industrial (ver dados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE). Mais curioso ainda é que em janeiro de 2013, justo quando houve crescimento do setor, o índice de confiança era menor que os tais 50 pontos da CNI.

Os investimentos diretos do setor industrial são um bom indicador para mensurar a confirmação da confiança. Em 2016, ano que se iniciou com pessimismo por parte dos industriais (índice de confiança em 36,4), os investimentos foram 25% maiores que no ano anterior (RENAI/MDIC). No ano seguinte (2017), de consolidação do Governo Temer, a confiança foi para 50,6, e os investimentos industriais foram quase 40% maiores que os de 2016. Em 2018 o comportamento se manteve: aumento da confiança, aumento dos investimentos. Em 2019, no entanto, quando a confiança atingiu 64,9 pontos, aumentando novamente, os investimentos caíram 25 pontos percentuais. A despeito do otimismo, não se observou crescimento do PIB industrial.

No dia em que eu temer, hei de confiar em ti.[1]

É difícil entender esse comportamento errático do setor mais intensivo em capital no Brasil, e não ouso fazê-lo, apontando apenas impressões nestes escritos. A FIESP está umbilicalmente ligada ao presente “governo”, tendo apoiado as campanhas de rua pela retirada de Dilma e abraçado Michel Temer e seus comandados desde o primeiro instante. Também caíram de boca na campanha de Jair. Pelos indicadores de investimentos, pode-se pressupor que os industriais cumpriram uma parte de sua tarefa, dando um voto de confiança ao governo de Temer. No entanto, quando o atual representante da maioria iniciou seu governo, a confiança subiu e os investimentos caíram.

O receio do homem armará laços, mas o que confia no dinheiro será posto em alto retiro[2].

As recentes reformas – trabalhista e previdenciária – deram um razoável alívio aos empresários. Os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) para os meses de janeiro a dezembro de 2019 mostram que, dos quase 600 mil empregos formais gerados, praticamente 100 mil são intermitentes ou temporários (em torno de 80  mil do primeiro tipo e quase 20 mil do segundo). Segundo o indicador de produtividade da indústria de transformação, a quantidade de unidades produzidas por fator empregado é a maior da série histórica. Já o faturamento médio da indústria de transformação se mantém no patamar de março de 2017, oscilante, no entanto, e mais baixo do que os índices do período do decênio anterior.

Quando observamos o índice da Bovespa, que reúne todas as transações financeiras realizadas na principal bolsa de negócios do país, o cenário é um tanto mais feliz para os apostadores. Desde junho de 2018 que a tendência da bolsa é de crescimento, batendo todos os recordes no ano passado (2019). O noticiário econômico nacional presta bastante atenção no mundo das moedas virtuais, mesmo que o ponto de contato dele com a vida cotidiana de um trabalhador médio brasileiro localize-se muito perto da borda do planisfério Terra. Com isso, parece-nos haver, além dos mundos virtual da bolsa de valores e real do entregador de aplicativo, um terceiro mundo, cujo porta-voz se assenhora de uma bancada na rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico, determinando que, a partir do fim dos pregões, todos devemos ser felizes. O mundo real se recusa a fazê-lo, até porque não tem dinheiro para pagar, nem tempo para assistir a um noticiário da tv por assinatura.

Não digo isto como por necessidade, porque não aprendi a contentar-me com o que tenho[3].

A confiança, índice honorífico para muitas culturas, é um indicador importante para investidores. Se um emprestador de recursos antevê uma possibilidade positiva de negócios, sua propensão ao empréstimo aumenta, principalmente se comparada a um cenário negativo, em que as possibilidades de recompensa são pequenas e as de risco muito altas. Longe de mim querer aqui decifrar o mundo moderno das finanças. Toda vez que penso ter entendido um termo da moda outono-inverno na bolsa de valores, os agentes vêm com suas tendências primavera-verão de investimentos. Por essa e por outras razões que o mundo das finanças é restrito aos insiders, e o mundo real é aberto aos desamparados. No entanto, é num cenário fechado e arredio que se realizam os maiores percentuais de lucro dos grandes empresários.

Embora saibamos que o índice de confiança é um indicador sintético formado por várias dimensões que tratam dos cenários atuais interno e externo à empresa, além das puras expectativas, é de se duvidar que os empresários respondam à pesquisa com a mesma precisão com que escolhem suas carteiras de investimentos. Fosse assim, estariam todos na rua pelos erros cometidos nos últimos quatro anos. A confiança, ao que parece, se materializa no dinheiro virtual dos mercados financeiros. A confiança é restrita a uns poucos dignos de adentrar no reino dos lucros.

No livro “De pernas pro ar: a escola do mundo às avessas”, Eduardo Galeano reproduz uma pergunta da cultura popular mexicana que provoca: “de que tanto riem as caveiras?”. Em nossas tumbas, ao perder os tecidos, sobram-nos ossos. Nosso crânio, sem os lábios, apenas sorri, com certo sarcasmo, diante do que nos restou. A confiança dos empresários industriais brasileiros, medida anualmente por dois importantes órgãos, parece sorrir do que nos restou. Mas há uma enorme distância entre nossos ossos e o dos empresários. O dos empresários são enterrados com suas carteiras de investimentos. Os nossos, com a alegria de que nossas dívidas morrem conosco.

João Dulci é Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e e Políticos (IESP-UERJ) e Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Colabora com a Escuta.

Imagem do filme “Braços Cruzados, Máquinas Paradas” (1979), de Roberto Gervitz e Sérgio Toledo.

Notas

[1] Salmos, 53:6.

[2] Paráfrase de Provérbios, 29:25. No original: “O receio do homem armará laços,

mas o que confia no Senhor será posto em alto retiro”.

[3] No original: Não digo isto como por necessidade, porque já aprendi a contentar-me com o que tenho. Filipenses 4:11.