Leonardo Nóbrega da Silva*

Os livros têm ocupado um lugar de transcendência na nossa sociedade, resguardando na imaginação coletiva uma distância em relação às questões materiais. As ideias e seus autores parecem, portanto, flutuar num ambiente etéreo, distante das preocupações supostamente mesquinhas relacionadas ao mercado e à política. Longe de ser verdadeiro, entretanto, esse distanciamento apenas dificulta a discussão e execução de projetos que são urgentes e estruturais para a construção de um país menos desigual.

Vem tramitando no Congresso Nacional dois Projetos de Lei (PL) que refletem boa parte do debate realizado no âmbito das questões relacionadas ao livro e à leitura nos últimos anos no país. São eles o PL 212/2016, que institui a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), e o PL 49/2015, que institui a Política Nacional do Livro e regulação de preços. Ambos os projetos foram propostos pela senadora Fátima Bezerra (PT), do Rio Grande do Norte, e contempla demandas articuladas em intensos diálogos entre editores, livreiros, bibliotecários, mediadores de leitura, escritores, docentes, pesquisadores e demais atores interessados na organização e estruturação de todo o universo relacionado ao livro e à leitura no país.

Tendo como seu objetivo primeiro, e mais fundamental, “democratizar o acesso ao livro e aos diversos suportes à leitura por meio de bibliotecas de acesso público”[i], o PL 212/2015, elaborado por José Castilho Marques Netto, quando este ainda era secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), propõe institucionalizar algo que, apesar do discurso convincente, na prática encontra tão poucos apoiadores: a abertura e manutenção de bibliotecas públicas de qualidade por todo o país. Veja-se, por exemplo, o caso da Biblioteca Parque Estadual do Rio de Janeiro. Depois de fechada por quatro anos para reforma durante a gestão de Sérgio Cabral, a reinauguração da biblioteca foi utilizada como grife na campanha do atual governador Luiz Fernando Pezão. Apenas um ano depois, entretanto, a biblioteca passaria a funcionar com restrição de horários e atualmente encontra-se totalmente fechada por falta de repasse de verbas. Esse exemplo é emblemático para se pensar como os livros rendem bons discursos, dado todo o universo simbólico no qual estão envoltos, mas sofrem nas mãos de péssimos gestores. É contra essa instabilidade, e pelo reconhecimento da leitura e seus espaços de sociabilidade como um bem comum, que o projeto em tramitação se insurge ao estabelecer como diretrizes fundamentais a “universalização do direito ao acesso ao livro, à leitura, à escrita, à literatura e às bibliotecas”[ii]. O reconhecimento da leitura e da escrita como um direito seria um avanço em termos de responsabilidade pública diante da carência de espaços de sociabilidade com os livros, como atestam as condições degradantes em que se encontram as bibliotecas brasileiras, com raras exceções.

Caminho paralelo, embora um tanto mais lento e polêmico, segue o PL 49/2015. O projeto, como dito acima, institui uma regulamentação aos preços dos livros no país nos doze primeiros meses após o seu lançamento, permitindo a aplicação de no máximo 10% de desconto em relação ao preço de capa. Grande parte da polêmica acerca desta proposta tem a ver com desinformação e uma crença dogmática no mercado como regulador ótimo dos preços aos consumidores. O projeto de lei institui a política nacional de fixação do preço do livro, seguindo os passos de países como França e Alemanha, com o objetivo geral de “fomentar o livro como um bem cultural”[iii]. Para que se possa compreender o que a lei propõe alterar, é necessário, antes, entender como o mercado de livros funciona atualmente.

As editoras fixam um preço para os seus livros, a partir do qual contabilizam o percentual destinado ao pagamento de direito autoral, tradução, impressão, editoração, encargos logísticos e administrativos, dentre outros. Diante do preço estabelecido, vende os livros às livrarias com descontos que variam entre 30% e 50%. Um livro previamente estabelecido em R$ 50, por exemplo, é vendido à livraria por um valor entre R$ 35 e R$ 25. Ao repassar o livro ao consumidor final, a livraria pode vender pelo preço de capa, os iniciais R$ 50, ou oferecer descontos, levando em conta a necessidade de pagar seus custos e obter lucro com a transação.

O que vem ocorrendo, entretanto, e que preocupa livreiros e editores, é que grandes redes varejistas, como a Amazon, Saraiva e outras redes de comércio não somente devotadas a livros, ao comprarem significativas quantidades de um determinado título, obtêm descontos maiores do que os disponibilizados aos concorrentes menores. Como consequência, conseguem repassar descontos a seus consumidores. Até aí parece tudo normal, seguindo a lógica do mercado como regulador – a famosa mão invisível. Mas é necessário observar as consequências “não intencionais” deste tipo de ação. As editoras, já sabendo que terão de dispor de descontos maiores para essas grandes redes, aumentam artificialmente os preços de capa dos livros de forma a equilibrar sua receita, encarecendo, portanto, os valores repassados às pequenas livrarias, o que no longo prazo inviabilizaria a sua existência. Um dos papéis destinados às pequenas livrarias é a formação de acervos especializados, realizando um trabalho de curadoria de conteúdo que dificilmente ocorre numa grande rede. O desaparecimento de pequenas livrarias apresenta consequências negativas para o que se vem chamado de “bibliodiversidade”. E a paisagem das grandes livrarias, é necessário reconhecer, já é assustadoramente homogênea.

Como afirma Felipe Lindoso, editor e pesquisador de questões relacionadas ao livro:

“Os descontos cada vez maiores (além de vantagens adicionais) exigidos pelas grandes cadeias tendem a puxar o preço dos livros para cima, disfarçando esse fenômeno com os descontos oferecidos no varejo – pelas grandes cadeias – e efetivamente jogando para fora da competição as livrarias independentes, incapazes de competir nesse jogo, particularmente no caso dos livros que entram na lista dos best-sellers (ou que já são “desenhados” para a lista)”[iv]

Uma rápida pesquisa ajuda a visualizar o problema. O livro “Na Minha Pele”, de Lázaro Ramos, foi alçado ao posto de terceiro mais vendido na lista do site Publishnews na última semana de julho de 2017[v] depois de sua exitosa participação na tradicional Festa Literária Internacional de Paraty. O preço de capa do livro foi definido pela editora Objetiva, do Grupo Companhia das Letras, em R$ 34,90. Utilizando o sistema de comparação de preços do site Buscapé, foi possível encontrar descontos que chegam a 28%, como o praticado pela loja online Livraria da Folha, do grupo Folha de São Paulo, que vende o livro por R$25,10. No Shoptime, site de venda de eletrodomésticos, o livro sai por R$ 26,00. Na Amazon e na Saraiva, o livro sai por R$ 27,90. Já na livraria Folha Seca, pequena livraria no centro do Rio de Janeiro – na tradicional rua do Ouvidor -, especializada em temas como cultura afro-brasileira, cultura carioca, futebol, samba e história do brasil, o livro sai por R$ 34,90, exatamente o preço repassado pela editora, sem descontos.

Os exemplos poderiam multiplicar-se ao infinito, chegando a casos em que os descontos alcançam 60% do preço de capa do livro. O que poderia parecer contra intuitivo – assumir prejuízo na venda de livros -, ganha sentido se pensado por outra lógica: grandes redes varejistas e lojas online assumem pequenos prejuízos como investimento, fidelizando o cliente para lucrar com outros produtos depois. É o impacto dessa lógica predatória que o projeto de lei propõe diminuir, e por isso conta com o apoio de entidades como a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), dentre outras instituições. Como afirma Luís Antônio Torelli, presidente da CBL, em entrevista ao jornal Nexo:

Imaginar que você possa gerar mais leitores ou vender mais livros com essa prática é uma coisa que não tem futuro. Mais cedo ou mais tarde você vai causar um problema no mercado, que é o que estamos observando hoje. Se isso fosse uma prática interessante, não estaríamos enfrentando tantos problemas como os que temos enfrentado nos últimos tempos, o fechamento de livrarias e de editoras importantes[vi].

Os dois projetos de lei apresentam questões fundamentais para o fortalecimento de uma cultura leitora no Brasil. Em meio ao cataclisma por que passa a sociedade brasileira, é fundamental que esse tema seja pautado nos mais diversos meios. Cultura e educação são essenciais para o desenvolvimento cidadão e as políticas relacionadas a esses setores precisam ser pensadas e geridas com seriedade.

Claude Lévi-Strauss, no livro “Tristes Trópicos”, descreve um evento icônico para se pensar a relação entre escrita e poder. Ao se referir aos Nambiquara, no capítulo intitulado “Lição de Escrita”, narra como o chefe da tribo, mesmo não sabendo ler nem escrever, fingiu que o sabia, numa mise-en-scène para aumentar o próprio prestígio diante do seu povo: rabiscou “garatujas” que deveriam parecer negociações comerciais em pé de igualdade com o antropólogo, forçado a entrar no jogo. É dessas amarras que devemos nos desgarrar: leitura e escrita devem ser um bem comum, de acesso universal, e não um elemento de distinção social e ferramenta de poder e dominação.

* Leonardo Nóbrega da Silva é doutorando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), e colabora com a Revista Escuta.

Notas:

[i] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n. 212, de 2016.

[ii] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n. 212, de 2016.

[iii] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei n. 49, de 2015.

[iv]   http://www.publishnews.com.br/materias/2011/12/13/66386-preco-fixo-agenciamento-e-direitos-autorais-e-as-livrarias-no-meio. Ver também o livro LINDOSO, Felipe. O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura / política para o livro. São Paulo: Summus, 2004.

[v] http://www.publishnews.com.br/ranking/semanal/0/2017/8/4/0/0.

[vi] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/07/02/O-que-diz-o-projeto-de-lei-que-limita-descontos-sobre-o-livro-no-Brasil.-E-por-que-isso-est%C3%A1-em-discuss%C3%A3o.