Hernandez Vivan Eichenberger*

O povo está faminto de saber, e agradece o pedacinho de pão do espírito que partilho com ele honestamente

Heine[1]

É preciso dizer que A paixão da igualdade: uma genealogia do indivíduo moral na França (Relicário, 2021) de Vinicius de Figueiredo é um livro excelente. A obra elabora e reconstitui o surgimento da noção de igualdade no pensamento francês. Para isso volta-se tanto a uma análise detalhada dos textos – Descartes, Pascal, Voltaire, Diderot e Rousseau, apenas para mencionar alguns – quanto à discussão de elementos históricos que podem iluminar a gênese das ideias. Além disso, as fontes não se limitam às filosóficas e históricas: há boas e competentes análises de obras de arte literárias e visuais que comparecem não meramente como ilustração de ideias já esboçadas teoricamente, mas sim na condição de observações argumentativas centrais. Adicionalmente e como se não bastasse, o livro é escrito em um estilo fluente e nada modorrento: o leitor é impelido adiante para saber qual o capítulo seguinte no drama da igualdade. Disso tudo resulta a dificuldade em resenhar essa obra: há uma grande e legítima tentação em salientar seus vários méritos, deixar-se levar pelo êxtase da leitura e, talvez, não fazer a devida justiça a livro tão instigante – a saber: justamente em dialogar criticamente com ele.

É possível dizer que A paixão da igualdade recebeu uma acolhida positiva do público. Uma apresentação informativa pode ser encontrada no texto de Hélio Schwarstman[2] e um debate de alto nível pode ser encontrado na difusão do PET Filosofia da UFMG[3]. Pelo fato de estarem disponíveis ao público boas resenhas do livro de Figueiredo ambicionarei, antes, tentar estabelecer um diálogo com suas ideias – o que eventualmente significará uma resenha caótica.

Se eu fosse surpreendido e tivesse que definir em poucas palavras o livro de Vinicius de Figueiredo eu diria que se trata de uma obra sobre os argumentos da igualdade antes de seu triunfo. Não que seja possível dizer que a igualdade, propriamente, “triunfou”. Walter Scheidel em Violência e a História da Desigualdade (Zahar, 2020)mostrou como o fenômeno social da desigualdade tem sido renitente na história humana e, mais que isso, como os remédios que levaram à sua atenuação talvez sejam mais amargos do que o bom senso estaria disposto a recomendar. Contudo, trata-se aqui de ideias: nesse sentido, é difícil não reconhecer que a noção de igualdade está inscrita, grosso modo, no ordenamento normativo moderno, de modo que, ainda que inalcançada, ela seja uma meta que envide esforços permanentes. O trabalho de Figueiredo consiste em mostrar como essa ideia se desenvolveu a partir de um contexto específico.

Eu retomo, não por acaso, o subtítulo de As paixões e os interesses: Argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo de Albert Hirschman (Paz e Terra, 2000).  Sobretudo porque em algum sentido me parece válido pensar A paixão da igualdade como algo próximo de um “duplo” do livro de Hirschman. Se Hirschman estava empenhado na longa concatenação de ideias que viriam a fundamentar a noção de “interesse” enquanto a pré-condição da ideia mesma dos benefícios sociais do comércio e acumulação, Figueiredo está atento, por outro lado, à noção de igualdade tal como se desenvolveu desde sua gênese na abadia de Port-Royal passando pelos profundos deslocamentos que iriam desaguar em Rousseau. Qual a semelhança então? Em ambos os casos se trata de contar uma história de ideias que vieram a ganhar o mundo antes de sua efetiva realização em grandes estruturas sociais, políticas e jurídicas. A diferença essencial reside no fato de que, conforme a expressão de Figueiredo, ele próprio organiza sua investigação na “mão francesa” desse processo, enquanto Hirschman na “mão inglesa”.

Eu ainda insistiria em dois temas análogos: ambos partem da crítica ao herói e da ética que lhe é correspondente. O aplainamento moral e subjetivo é condição de possibilidade seja da igualdade, seja de uma ética que valorize ganhar dinheiro como atividade precípua – ambos são “antípoda[s] por excelência da personalidade aristocrática”[4]. Além disso, uma outra semelhança de família entre os livros pode ser assinalada pela ideia “de que o novo surgiu do velho num grau maior do que tem sido geralmente reconhecido”[5]. Esse talvez seja um dos achados mais interessantes do livro de Figueiredo: a igualdade encontrou suas primeiras formulações na narrativa niveladora da “queda”: é da miséria compartilhada, resultado da expulsão do paraíso, que decorre a condição de igualdade – portanto, nada mais velho.

Contudo, essa ideia teológica apenas se tornaria um dos pilares do mundo moderno se fosse devidamente torcida e transformada. Boa parte do livro é dedicada a explicar no detalhe esse deslocamento. Em resumo,

“Rousseau difere deles [dos autores de Port-Royal] quando sustenta que nosso estado atual resulta de escolhas ou consentimentos mais ou menos conscientes que prevaleceram no curso da história. A miséria associada ao amor-próprio não remete, por isso, ao dogma da queda, mas a um quadro diacrônico, no interior do qual paixões e interesses surgiram e se desenvolveram à medida que os indivíduos foram se socializando”[6].

Sem muito exagero talvez pudesse ser dito que há uma espécie de “secularização” da ideia de igualdade. Agora, desvinculada de sua ganga teológica, ela pode se implementar em toda sua eficácia.

O pano de fundo histórico desse longo processo diz respeito à centralização política do Estado francês desde a Fronda a qual, por sua vez, levaria à hegemonia dos Bourbon: “Seria paradoxal se, no curso do reinado mais longo e centralizador da história europeia (1661-1715) e que representou a forma mais bem-acabada do absolutismo monárquico, nos deparássemos com concepções sobre o ser livre e igual aos seus semelhantes baseadas no enaltecimento das liberdades individuais, como na Inglaterra”[7]. Curiosamente, ainda que de passagem, vale lembrar à título de contraste que o Ressentimento da Dialética de Paulo Arantes – um livro que sem dúvida é uma das inspirações de Figueiredo – explora justamente esse paradoxo, a saber, como foi a baixa densidade do meio que conduziu o pensamento até suas formulações mais radicais[8]. Ou, dito de outro modo, como foi desse divórcio e descompasso profundo entre intelectuais e sociedade que a gênese da dialética deve ser compreendida. De qualquer modo, importa sublinhar o motivo explicitamente retirado de Tocqueville, a saber, a centralização do poder que modulou na França o nivelamento.

Na conclusão do livro Figueiredo retoma explicitamente a tese nietzschiana de que a ideia de igualdade (e consequentemente o Estado centralizado) é a substituta dissimuladamente secularizada da religião. De resto, a origem pascaliana é um, embora não único, indício plausível. Outro seria a instituição de um flagrante dualismo que apareceria como a distância entre o reconhecimento do ser e o dever-ser. Em comentário alusivo a Rousseau, Figueiredo informa que

“a secularização do conceito de ‘miséria’ associa-se à politização da história, reativando o dualismo pascaliano, mas colocado, agora, de ponta-cabeça. A distância do homem para consigo (sua cesura interna) não se contenta mais em constatar o que separa sua condição efetiva de sua origem. Se a alienação é interna à história do sujeito, a política como expansão da consciência temporal, fornece a ocasião para transformá-lo”[9].

Ou seja, de fato há elementos que permitiriam uma recomposição do dualismo, agora, por assim dizer, de maneira imanente (ou pretensamente imanente). Figueiredo é extremamente cuidadoso e investiga a tese com cautela, reconhecendo que ainda que o nivelamento comporte outras interpretações, quanto à tese de Nietzsche o “percurso desenhado aqui não saberia refutar diretamente essa conclusão”[10]. Figueiredo mesmo aponta uma via alternativa, do surgimento da cidadania. Todavia, fiquei me perguntando se, de qualquer modo, nisso não há concessão demais a Tocqueville, Nietzsche e, um personagem de fundo, mas muito importante, Lebrun. Ainda que apareça de modo explícito apenas discretamente, parece legítimo perguntar se não é de Lebrun que Figueiredo retira parte do seu programa: “(…) em nossos dias, positivismo, utilitarismo, socialismo e outros mais vivem dessa herança, e mesmo vão além na paixão cristã do nivelamento. Deus está morto, mas os homens permaneceram iguais e semelhantes como o eram sob seu olhar”[11]. Em uma nota na conclusão do livro somos lembrados de que não há qualquer “vocação democrática” francesa, mas sim uma educação política napoleônica, jacobina e advinda de Richelieu que resultou em centralização. A minha dúvida é se não poderia haver uma interpretação mais caridosa de Napoleão[12], como expoente necessário da modernidade, e se, portanto, a posição nietzschiana que acusa o pendor pela igualdade de ser uma transvaloração ressentida não seria, a posição acusadora, o ressentimento daqueles a quem a modernidade política varreu do poder.

Em resumo, a minha questão, no fundo, é se dessa origem eventualmente comprometedora precisaríamos pensar a ideia de igualdade como intrinsecamente ligada a um conteúdo teológico; ou seja, se a origem histórica e empírica compromete ou macula seu valor normativo. O argumento a favor do partido de que a origem teológica compromete a ideia de igualdade está na reatualização do dualismo: Kant é testemunha exemplar[13]. Entretanto, caberia a pergunta se, como Figueiredo mesmo alude, não seria Hegel quem forneceria uma resposta persuasiva sobre uma compreensão não dualista, ainda que profundamente tensa, da modernidade[14]. Isso se daria a partir do reconhecimento das diversas estruturas sociais que atualizam os dilemas percorridos no livro de Figueiredo, seja a mão inglesa (a dimensão do particularismo e da livre iniciativa da sociedade civil-burguesa), seja a francesa (os mecanismos de correção das desigualdades que são produzidos continuamente pela dinâmica mesma da sociedade). Para ser inteiramente justo: Figueiredo mais anota do que compartilha da crítica “aristocratizante”; ele próprio é um partidário da força estruturante da igualdade.

Como uma nota final, penso que o trabalho de Figueiredo pode ser lido como uma contribuição especificamente filosófica à longa lista de estudos sobre a igualdade/desigualdade. O instigante livro de Walter Scheidel sobre a longuíssima história da desigualdade, por exemplo, pensa apenas em largos traços as “ideias” em torno da igualdade, seja como atuantes no combate à desigualdade, seja em sua lógica própria[15]. A reconstituição fina de Figuereido deve ser vista no interior de uma grande constelação que inclui Thomas Piketty, Wolfgang Streeck, o próprio Walter Scheidel e tantos outros.

Se excedi a forma razoável que uma resenha deve assumir, isso se deve apenas ao fato de que o livro de Vinicius de Figueiredo é profundamente instigante e nos faz pensar em como seriam descritos os desdobramentos da paixão da igualdade em tempo mais dilatado. O exercício de imaginação aqui proposto, contudo, talvez enseje do próprio Figueiredo uma resposta, a qual desde já espero ansiosamente.

*Hernandez Vivan Eichenberger é professor de filosofia do Instituto Federal Catarinense e colaborador da Escuta.


Notas

[1] HEINE, H. Heine, hein? Tradução de André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 477.

[2] SCHWARTSMAN, H. Livro faz a genealogia da igualdade. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/10/livro-faz-a-genealogia-da-igualdade.shtml>. Consulta em 09.04.2022.

[3] “A paixão da igualdade. Lançamento do Livro de Vinicius de Figueiredo”, PET Filosofia UFMG. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=I3MFBYPLwvw&gt;. Consulta em 09.04.2022.

[4] FIGUEIREDO, V. A paixão da igualdade: uma genealogia moral na França. Belo Horizonte: Relicário, 2021, p. 21.  

[5] HIRSCHMAN, A. As paixões e os interesses: argumentos políticos para o capitalismo antes de se triunfo. Tradução de Lúcia Campelo. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 12.

[6] FIGUEIREDO, op. cit., p. 192.

[7] Idem, pp. 15-16. 

[8] ARANTES, P. Ressentimento da Dialética. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 133-136.

[9] FIGUEIREDO, op. cit., pp. 194-195.

[10] Idem, p. 240.

[11] LEBRUN, G. “A especulação travestida”, in: A filosofia e sua história. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 67.

[12] NOBRE, M. Como nasce o novo. São Paulo: Todavia, 2018, pp. 54-55.

[13] FIGUEIREDO, op. cit., pp. 237-238.

[14] Por exemplo, BUCHWALTER, Andrew (org.). Hegel and Capitalism. Nova Iorque: Suny Press, 2015; MANN, Geoff. In the long run we are all dead – Keynesianism, Political Economy, and Revolution. London-NewYork: Verso, 2017

[15] SCHEIDEL, W. Violência e história da desigualdade: da Idade da Pedra ao século XXI. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 533.