Fernando Perlatto*

“Ela não tinha uma verdadeira linhagem. E embora muitos moldassem a si mesmos a partir da imagem dela, seu papel nunca seria preenchido de modo convincente de novo: ela criou o molde e em seguida o quebrou” (p.214).

A escrita de uma biografia é sempre um exercício intelectual difícil. Reunir o maior número de fontes possível, entrevistar pessoas, visitar arquivos e, depois, articular todo este material em uma obra que tenha uma coerência é uma tarefa árdua. Após a conclusão do livro, ter que, obrigatoriamente, lidar com a insatisfação de muitos leitores, amigos, familiares. E o desagrado certamente virá. Uma biografia nunca contemplará as expectativas que todos os leitores construíram sobre o biografado. Se a personalidade biografada for controversa, aí, então, as dificuldades se tornam ainda maiores para o biógrafo. E foi este o desafio que Benjamin Moser se colocou para a elaboração de Sontag. Vida e obra.

Publicado originalmente em 2019 e traduzido para o Brasil no mesmo ano pela Companhia das Letras, o livro de Moser – que acaba receber o Prêmio Pulitzer, na categoria “Biografia” – vem a se somar a outras obras que buscaram narrar a vida da intelectual norte-americana. Se junta, por exemplo, a Swimming in a Sea: A Son’s Memoir (2008), livro escrito por David Rieff, filho de Sontag, e A Photographer’s Life, registro de fotografias realizado por sua última companheira, Annie Leibovitz. Diferencia-se deles pelo foco, abrangência e o lugar que ocupa em relação à biografada.

Mobilizando sua experiência neste ofício, já atestada em Clarice. Uma biografia (2009), Moser reconstrói minuciosamente a trajetória de Sontag, articulando vida privada, intervenções públicas e obras. Vale-se, para isso, tanto da realização de entrevistas e do mergulho em seus arquivos pessoais e diários[1], quanto de uma investigação de seu engajamento nos debate públicos e de uma análise minuciosa dos escritos da autora.

O risco de uma biografia “oficial” ou de uma hagiografia está sempre colocado em um trabalho com este escopo, sobretudo, como é o caso de Moser, quando o biógrafo é o escolhido pela família como depositário dos arquivos pessoais da biografada. O autor, contudo, não pode ser acusado deste passo em falso. A obra assume um distanciamento e uma posição crítica em relação a várias das ações e escolhas de Sontag ao longo de sua vida. A fluidez – e, em alguns casos, a superficialidade – de seus posicionamentos políticos, a depender da conjuntura, suas inseguranças, seu comportamento materno muitas vezes displicente e descuidado, ao mesmo tempo, exageradamente exigente, a dicotomia entre os cuidados com o corpo e com a mente, e suas dificuldades com a própria higiene são, por exemplo, temas que Moser mobiliza para questionar ações, atitudes, hábitos e escolhas de Sontag. O biógrafo levanta também objeções à sua relutância em assumir publicamente a homossexualidade e se posicionar de modo mais forte sobre este tema em ocasiões que esta atitude parecia se fazer necessária.

No caso em questão, Moser poderia ser acusado do contrário, isto é, de pesar excessivamente a mão nas críticas à biografada. É precisamente a isso que se refere a crítica de Janet Malcom, em resenha publicada na revista The New Yorker. Ela acusa Moser de abandonar a postura de um observador neutro que um trabalho como este exigiria, assumindo a condição de “adversário intelectual” do seu objeto. Isso o teria levado a sobrevalorizar os medos e as inseguranças de Sontag, bem como seus comportamentos irascíveis e muitas vezes desprezíveis, que ganhariam maior projeção e destaque na biografia do que na sua sólida carreira intelectual. Seu retrato sairia deturpado do livro de Moser: Sontag apareceria nesta biografia muito mais como uma pessoa digna de pena do que alguém a ser admirada e invejada.

É possível concordar com algumas das ponderações realizadas por Malcom em sua resenha, sobretudo quando ela destaca que Moser naturaliza muitos dos depoimentos por ele coletados, sem cotejá-los e contrastá-los com os de outros entrevistados. Porém, é exagerado dizer que o autor se coloca como um “adversário intelectual” de Sontag. Ainda que as críticas a ela estejam presentes em diferentes trechos da biografia, é perceptível a sua profunda admiração em relação à autora e o cuidado com que ele conduz, na maior parte das vezes, suas objeções.

Além dos pecados da hagiografia ou do “hipercriticismo”, uma biografia também pode cair no erro daquilo que Pierre Bourdieu chamou de “ilusão biográfica”, que teria como pressuposto básico a ideia de que uma vida, narrada a posteriori, seria um todo coerente, com princípio, meio e fim muito bem estabelecidos. No caso de Sontag, o risco da ilusão biográfica se faz ainda mais presente, pois impressiona, desde nova, sua determinação, dedicação, engajamento em um “projeto de autotransformação”, além de sua enorme capacidade de trabalho. A jovem Sontag já desejava se tornar alguém capaz de publicar em revistas importantes como a Partisan Review, “o órgão dos escalões mais altos da intelligentsia de Nova York” (p.69), de ser popular, ganhar o Prêmio Nobel e se converter em uma intelectual de destaque na cena cultural mundial. Porém, Moser consegue lidar com essa questão de maneira bem-sucedida, demonstrando como a vida de Sontag foi se fazendo, com idas e vindas, em meio a percalços e dificuldades várias.

Uma das principais qualidades de Sontag. Vida e Obra é a já mencionada articulação entre vida privada, intervenções públicas e obra. Moser procura explorar aquilo que ele chama de “hiato entre Susan Sontag e ‘Susan Sontag’”, ou, dito em outros termos, o “abismo e contradições entre a vida íntima e o ícone Sontag”. Para analisar sua vida privada, o biógrafo percorre a trajetória da escritora, com atenção mais direcionada às relações que ela construiu – e na maior parte das vezes, também desconstruiu – com algumas personagens específicas, como sua mãe, Mildred, sua irmã, Judith, seu primeiro marido, Philip, com quem casou aos 17 anos e logo se separou, seu filho, David, além das amizades com personalidades como Roger Strauss, que, tendo ajudado financeiramente a autora e publicado seus livros, “tornou possível a carreira de Susan”. Moser também se debruça sobre os relacionamentos amorosos que a escritora estabeleceu ao longo da vida com mulheres como Harriet, Irene, Carlota, Nicole, Lucinda e Annie Leibovitz. Nesse caso específico, o autor, em trechos diversos, chama a atenção para a tensa e conflitiva relação de Sontag com a sua homossexualidade, que parece nunca ter sido devidamente resolvida.

No percurso biográfico de Sontag, Moser explora também sua trajetória formativa, seu trânsito por universidades como Berkeley, Chicago e Oxford, a centralidade da vida intelectual e da boemia artística de Nova York para sua formação e sua sociabilidade com outros intelectuais e artistas. Narra também as viagens por ela realizadas e que foram fundamentais para a definição de escolhas em sua vida, em especial sua ida a Paris ainda na juventude, após o nascimento do filho. Moser explora com acuidade seu mergulho na cultura “clássica” e de vanguarda, suas preferências de leituras, filmes e músicas, suas paixões e obsessões intelectuais, como Benjamin, Beckett, Barthes e Arendt, listadas em várias passagens de seus diários. Mediante a leitura da biografia, o leitor vai compreendendo com maior clareza o processo de formação e de consolidação desta intelectual erudita, refinada e cosmopolita, com uma antena sensível para as obras mais notáveis e os principais debates públicos da contemporaneidade, além de se informar de que maneira ela foi se convertendo – e sendo convertida – “em um item de coleção na vida literária americana do século XX” (p.213).

Moser enfatiza que os acontecimentos privados da vida de Sontag acabaram por influenciar decisivamente muitos aspectos de sua obra. A experiência, por exemplo, de, aos doze anos de idade, ter se deparado em uma livraria que visitava com sua mãe com fotos do Holocausto a chocou de tal modo que, “pelo resto da vida, ela se perguntaria, livro após livro, como a dor podia ser retratada e como podia ser suportada” (p.17). O livro Diante da Dor dos Outros, o último que publicou em vida, lançado em 2013 por uma Sontag já com seus 70 anos, é a consolidação desta sensibilidade, que, talvez tenha se tornado ainda mais intensa diante das próprias dores pessoais por ela enfrentadas em decorrência das batalhas que travou contra o câncer durante a vida. A doença, que se manifestou pela primeira vez quando ela possuía ainda 42 anos e que voltaria em outras ocasiões – inclusive levando-a a morte em 2004 – a fez debruçar sobre o tema da dor em diversos trabalhos, com destaque para o livro como Doença como metáfora, publicado em 1978.

A partir de episódios vários de sua vida, o biógrafo percorre toda a produção intelectual de Sontag, desde seus primeiros escritos, como o romance O Benfeitor (1963) e a coletânea de ensaios Contra a Interpretação (1966) – livros estes que impactaram a cena intelectual nova-iorquina e permitiram a ela, ainda muito jovem, ingressar com autoridade nesta arena literária – passando por clássicos como Sobre Fotografia (1977), coletâneas sofisticadas como A Vontade Radical (1969), I, Etcetera (1978), Sob o Signo de Saturno (1980) e Questão de Ênfase (2001), livros fortes como Aids e suas Metáforas (1989) até chegar a seus últimos romances O Amante do Vulcão (1992) e Na América (2000). Nem todos os trabalhos, por certo, foram bem recebidos pela crítica e pelo público, como seu segundo romance, Morte em questão (1967). Mas, de modo geral, suas obras contribuíram para possibilitar reflexões novas acerca de temas já interpretados por outros autores, além de lançar luzes sobre objetos, intelectuais e artistas ainda pouco vistos e analisados, inclusive, contribuindo para a construção de um novo cânone literário e artístico.

Algumas viagens realizadas por Sontag, destaca Moser, foram decisivas para a escrita de seus textos. São exemplares nesse sentido ensaios como “O que está acontecendo na América” e “Viagem para Hanói” – baseados em sua excursão ao Vietnã do Norte e incluídos em A Vontade Radical (1969) – e “Esperando Godot em Saravejo”, um belo e forte relato da montagem da peça teatral de Beckett que dirigiu em Sarajevo em 1993, publicado na coletânea Questão de Ênfase (2001). Além do teatro e, obviamente do ensaio e da literatura, Sontag explorou outros meios para expressar suas visões de mundo, como a direção de filmes – a exemplo de Duet for Cannibals (1969), Brother Carl (1971) e Unguided Tour (1983) – e do documentário Promised Lands (1974), que aborda o conflito árabe-israelense. Ainda que seja possível ponderar que eles não tenham a mesma força que seus ensaios, todos, cada qual à sua maneira, trazem muito fortemente o seu olhar e a marca da sensibilidade artística de Sontag.

Um dos pontos altos da biografia de Moser é a análise da maneira pela qual Sontag se construiu e se firmou ao longo dos anos como uma das principais intelectuais públicas da segunda metade do século XX, se juntando a um panteão de autores como Sartre, Camus, Beauvoir, Aron e Arendt. Conforme destacado pelo autor, “Susan Sontag foi a última estrela literária dos Estados Unidos, uma remissão a uma época em que escritores, mais do que meramente respeitados ou bem conceituados, podiam ser famosos” (p.18, grifos do autor). Desde pelo menos o final dos anos 1960, quando Sontag participa e se engaja criticamente no debate público sobre a invasão do Vietnã – e escreve, naquele período, que “‘Escritores deveriam estar na vanguarda da minoria dissidente (…) ‘daqueles que estão com medo, daqueles que estão envergonhados, daqueles que dizem ‘Não’, daqueles que dizem ‘Estamos sangrando’, daqueles que dizem ‘Parem’” (p.241) –, Sontag não deixou de se inscrever e atuar diretamente no debate público, com escritos em jornais e participação em entrevistas, palestras e atos cívicos.

Moser relata várias destas ocasiões em que a autora mobilizou sua autoridade intelectual para intervir no debate público, a exemplo de seu mergulho militante no massacre em Sarajevo e de sua atuação como presidente da seção americana do PEN – uma articulação mundial de escritores –, ocasião na qual desempenhou papel fundamental para o apoio à Salman Rushdie, ameaçado de morte pelo líder supremo do Irã, o aiatolá Khomeini, após a publicação de seu livro Versos Satânicos (1988). O biógrafo também lembra a participação de Sontag nos últimos anos de sua vida nas controvérsias públicas em torno da “guerra ao terror”, liderada por George W. Bush, após os atentados às Torres Gêmeas, do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. Além das críticas ao “patriotismo exacerbado” e ao “clima de chauvinismo” dominante no país na sequência dos ataques terroristas, Sontag escreveu um duro ensaio para a New York Times Magazine, intitulado “Diante da dor dos outros”, no qual reflete de forma sensível e potente sobre as fotos de soldados americanos torturando detentos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque.

É precisamente nestes trechos específicos, em que aborda a ação de Sontag como intelectual pública, que Moser adota um tom exageradamente duro em relação à biografada. A visão liberal de mundo do biógrafo invade de forma excessiva as avaliações que realiza dos posicionamentos políticos da autora. Suas objeções aos elogios que a jovem e radical Sontag faz à Revolução Cubana e às resistências à invasão americana no Vietnã são, por exemplo, contrastadas com as posições da Sontag madura e liberal, crítica ao comunismo, com claros elogios à moderação da segunda. Moser saúda o aggiornamento dos posicionamentos políticos de Sontag, que teria se tornado “uma voz da consciência liberal” (p.338), como se esta mudança significasse necessariamente um amadurecimento em relação ao seu radicalismo anterior. Ainda que elogie Sontag quando esta adota em seus ensaios posturas políticas mais nuançadas e ambivalentes, a convicção liberal de Moser muitas vezes embaça sua percepção sobre as próprias contradições do liberalismo. No momento em que enaltece Sontag por sua conversão ao credo liberal, “expressão política de incerteza: a tentativa de acomodar múltiplas perspectivas em vez de impor um único ponto de vista” (p.377, grifos meus), Moser assume de forma equívoca e acrítica a flexibilidade do liberalismo, perdendo de vista como este se firmou, ao longo das últimas décadas, como uma verdade quase absoluta e incontestável, a partir de uma construção política que fazia com que qualquer problematização ao consenso liberal fosse negada ou ridicularizada.

A despeito dessas ponderações, fato é que Moser consegue reconstruir com fineza a trajetória de Sontag como intelectual pública, destacando de que maneira ela se posicionou de forma permanente e corajosa em torno de variadas questões do tempo presente. Esses posicionamentos, por certo, não se davam sem tensões, não apenas com os setores mais conservadores, mas também com as “minorias” progressistas. A forma como Sontag, mulher e homossexual, se portava em relação aos debates concernentes ao feminismo e às agendas LGBT – ou, dito em outros termos, a condição que ela conferia ao seu “lugar de fala” nas controvérsias públicas sobre esses temas – é exemplar destas tensões. Em “sua aspiração à universalidade” (p.345), Sontag buscava se colocar como uma intelectual do todo e não das partes, demonstrando enorme resistência e desconforto em ser vista e reduzida a uma porta-voz das “minorias”. Conforme destacado por Moser, Sontag acreditava que sua força e influência no debate público “dependiam de estar estabelecida inquestionavelmente como um árbitro universal”. Nesse sentido, “ser conhecida como feminista, e mais ainda como lésbica, a teria empurrado para as margens” (p.346).

Um tema muito bem explorado por Moser em sua biografia diz respeito ao engajamento de Sontag nos debates relacionados à crítica cultural. Segundo o autor, a definição de T. S. Eliot de que a crítica deveria servir como uma espécie de “policiamento das fronteiras culturais” – que havia sido tão central para intelectuais de uma geração anterior à de Sontag, como Edmund Wilson, Lionel Trilling e Randall Jarrell – foi problematizada, em diversas ocasiões, por Sontag. Ainda que admirando e incorporando muitos dos valores esposados por estes intelectuais, “que modelaram uma coisa chamada ‘Era da Crítica’” – e que se viam como defensores da “alta cultura” e “formadores de um escudo profilático” contra tudo o que fosse “fácil demais, popular demais, submetido demais ao dinheiro, à imagem e ao sucesso” (p.200) –, Sontag contribui de forma decisiva para alargar o cânone da crítica cultural. Esse seu posicionamento gerou desconforto em muitos dos intelectuais da geração anterior, que a acusavam de “niveladora”. “A ideia de que alguém pudesse escrever sobre filmes de ficção científica, ou happenings, ou um estilo homossexual conhecido como camp, e ainda desejar ser levado a sério como intelectual”, destaca Moser, “era perturbadora”. “Os mais velhos viam suas distinções, traçadas com tanto cuidado, serem jogadas na lata do lixo” (p.201).

Porém – e é este o argumento que Moser analisa tão bem – não se tratava para Sontag de uma defesa incondicional da abolição das distinções e das hierarquias culturais. Ao analisar o ensaio da autora, intitulado “Uma só cultura e a nova sensibilidade”, o biógrafo enfatiza que, para Sontag, a defesa de “uma só cultura” não implicava em “abolir distinções entre elevado e baixo, mas propor uma nova aliança entre a cultura literária e a cultura científica à qual tinha sido tradicionalmente oposta” (p.237). Conforme destacado por Sontag posteriormente: “As hierarquias (alto/baixo) e as polaridades (forma/conteúdo, intelecto/sentimento) que eu contestava eram aquelas que inibiam a compreensão das novas obras que eu admirava”; mas isso não significava que a ideia de hierarquia deveria ser necessariamente solapada por completo, mas sim redefinida, ampliada, alargada. Em uma entrevista, Sontag declara que, “em certo sentido, eu era uma militante ou apoiadora da hierarquia cultural tradicional tanto quanto outro conservador cultural, mas eu não traçava a hierarquia da mesma maneira” (p.368-9, grifos meus).

O que é interessante perceber é que, no momento em que fazia este movimento de problematização das hierarquias, distinções e os enfrentamentos ao mainstream da crítica cultural, Sontag não tinha a compreensão – e, de fato, não poderia ter naquele momento – de que seu movimento em direção à ampliação do cânone poderia resultar em consequências negativas, como ela mesmo reconheceria posteriormente, conduzindo à “perda de credibilidade na cultura em geral e que uma parcela da arte mais transgressiva que eu apreciava iria reforçar transgressões frívolas, meramente consumistas” (p.239). Sua interpretação e seu diagnóstico dos rumos da cultura são notáveis: “Trinta anos depois, a tarefa de solapar os critérios de seriedade está quase concluída, com a ascensão de uma cultura cujos valores mais inteligíveis e persuasivos derivam da indústria de entretenimento. Hoje, a própria ideia de sério (e dos respeitável) parece esquisita, irrealista, para a maioria das pessoas” (p.239).

A partir desta percepção do quanto a explosão das hierarquias e do avanço do consumismo haviam conduzido a uma espécie de rebaixamento cultural e da perda da importância do lugar dos intelectuais no debate público, Sontag redefine seus posicionamentos e passa, na parte final de sua vida, a “simbolizar a alta cultura e os critérios rigorosos que a sustentavam” (p.341). A autora realiza, inclusive, enfrentamentos intelectuais contra o “chamado pós-modernismo’, que ela definia como ‘tornar tudo equivalente’” (p.368). Se não restavam dúvidas de que intelectuais identificados como pós-modernos, como Foucault e Derrida, e movimentos político-sociais, como o feminismo, haviam, cada qual à sua maneira, contribuído de maneira importante para a problematização das hierarquias culturais e para a crítica ao cânone, a conclusão pelo “nivelamento” de forma acrítica seria um equívoco de enormes proporções. Como destacado por Moser: “Uma coisa era expandir critérios para incorporar a arte excluída por injustiça histórica, como os movimentos feminista e negro tentavam fazer. Outra era sugerir que todas as obras eram equivalentes” (p.368).

Em um dos trechos de seus diários, Sontag escreve que existem três grupos de escritores: no primeiro, estariam aqueles que “se tornam conhecidos, ganham ‘estatura’ se tornam pontos de referência para seus contemporâneos que escrevem no mesmo idioma”, a exemplo de Emil Staiger, Edmund Wilson e V. S. Pritchett. O segundo grupo seria constituído por escritores “internacionais”, que se tornam “pontos de referência para seus contemporâneos em toda a Europa, as Américas, o Japão etc.”, como, por exemplo, Benjamin. Por fim, haveria um terceiro grupo, constituído por aqueles escritores que “se tornam pontos de referência para sucessivas gerações em muitos idiomas”, a exemplo de Kafka. De acordo com Sontag, ela estaria “no primeiro grupo, à beira de ser admitida no segundo” embora desejasse “figurar no terceiro” (p.511). A leitura da biografia de Moser evidencia, a partir de diferentes prismas, por quais razões Sontag esteve no primeiro, foi admitida no segundo e figurou no terceiro, tornando-se uma das intelectuais públicas mais importantes da segunda metade do século XX.

Notas:

[1] Ver “Os diários de Susan Sontag (1964-1981)”, de minha autoria, publicado nesta revista.

* Fernando Perlatto é um dos Editores da Revista Escuta.