Fernando Perlatto *

Minha gente era triste, amargurada, / Inventou a batucada, Pra deixar de padecer, / Salve o prazer, salve o prazer (Assis Valente)

Uma discussão que ganhou as redes sociais ao longo das últimas semanas foi aquela relacionada à pertinência ou não de se organizar o carnaval em uma época tão conturbada como a que o Brasil está vivendo. Ainda que este seja um debate recorrente em todos os anos, quando se aproxima fevereiro, ele ganhou novos contornos com a exacerbação da crise econômica que o país está passando. No atual cenário, seria, de acordo com os críticos, um equívoco completo que o poder público e agentes privados despendessem seus recursos e suas energias para organizarem algo tão contraprodutivo como o carnaval, que ao invés de gerar alguma coisa de útil, apenas contribuiria, com seu espírito dionisíaco, para a dispersão e a busca do prazer ilimitado e imediato, sem quaisquer preocupações de médio e longo prazo. Muitos daqueles contrários à organização do carnaval argumentam que a adesão à festa seria um dos traços a evidenciar o atraso do povo brasileiro que, quando comparado com os europeus e os norte-americanos, mostraria sua faceta dispersiva, irresponsável e insensata, dando preferência à festança e à folia ao invés de se dedicar ao trabalho e à resolução dos problemas de maior relevância.

Este texto é um libelo contrário a este tipo de argumento e a defesa da compreensão do carnaval não como problema, mas como potencialidade; não como contraproducente, mas como possibilidade aberta de transformação. Trata-se de pensar o carnaval a partir de uma perspectiva não utilitária, interpretando-o como uma forma possível de contraposição a uma série de valores e perspectivas que dominam a agenda global contemporânea, relacionadas às dificuldades com a integração do outro e da compreensão do diferente. Em um mundo que, frente a crises diversas, como a dos refugiados e dos imigrantes, se defronta com problemas vinculados à coexistência com os diferentes, o carnaval, com sua vocação aberta e agregadora, aparece como um antídoto a ser usado contra a segregação e a separação. Em um contexto marcado pela exacerbação do individualismo e das posições polarizadas que dificultam o encontro, o carnaval surge como o espaço da troca, da reunião aberta e do convívio coletivo no espaço público. Em um período caracterizado pelo domínio da racionalidade instrumental, das soluções tecnocráticas e da tristeza e da melancolia da vida moderna, a experiência criativa imaginativa e inventiva dos foliões carnavalescos – com suas fantasias cômicas, planejadas ou improvisadas, suas marchinhas irreverentes e seus nomes de blocos sacanas e de duplo sentido – desponta como um contraponto a mostrar as possibilidades integradoras da alegria, da folia, do prazer e do riso.

Ancorando-se em uma tradição que se vincula a autores como Richard Morse e Darcy Ribeiro, que procuraram na trajetória civilizacional ibérica e/ou brasileira mais as potencialidades e as possibilidades do que as ausências e as inautenticidades, defende-se aqui que, antes do que fraqueza, o carnaval, da forma como se desenvolveu no país, seria justamente uma das principais contribuições brasileiras para se pensar os tempos contemporâneos que vivemos em bases mais fraternas e solidárias. No que concerne ao discurso, na perspectiva bakhtiniana, o carnaval é o espaço por excelência da cultura popular, o espaço do riso, do humor, da ironia e da paródia, que se contrapõe à fala séria, sisuda e racional da cultura oficial. Em uma perspectiva diversa da ordem, da estabilidade, da rigidez e da contenção das cerimônias oficiais, o carnaval, como celebração característica da festa popular, é o terreno da fala livre, cômica, excessiva e espontânea, que tem na dimensão corporal uma de suas principais manifestações. Diferentemente do discurso monológico, unívoco e hegemônico do poder oficial, o carnaval aparece como o terreno da polifonia, da pluralidade de vozes, que, ainda que muitas vezes de forma implícita, questionam e subvertem a ordem a todo o momento, por meio de estratégias lúdicas e de elementos expressivistas, atravessados pela inventividade, pela imaginação e pela criatividade.

No que concerne à forma, a análise do carnaval abre caminhos para a problematização de uma das teses mais fortes no senso comum, reforçada por muitas interpretações das ciências sociais, segundo a qual a sociedade brasileira seria insolidária e desorganizada. Ao contrário desta leitura negativa, que apenas reforça aspectos ausentes do povo brasileiro, o que se vê no carnaval é uma sociedade que se mobiliza, que se organiza e que cria laços de solidariedade dinâmicos, pulsantes e vibrantes. O maior exemplo disso são os blocos que tomam as ruas do país no carnaval, seja nos centros e periferias de grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, seja em pequenos municípios do país. Os blocos de carnaval espalham-se como uma epidemia de alegria, humor e diversão, ocupando as ruas de forma misturada, democrática e festiva, em uma lógica completamente inversa à apropriação segregada e excludente do espaço público.

Junto aos blocos de rua, as escolas de samba também se mostram como lugares potentes de sociabilidade, organização e associativismo. O que se vê é a mobilização de pessoas durante o ano todo, com a criação de redes que impulsionam dinâmicas organizativas próprias, muitas vezes sem quaisquer suportes do Estado ou de patrocínios privados, valendo-se, sobretudo aquelas do grupo de acesso, da reutilização de sobras e de remendos, de “vaquinhas” e “livros de ouro” para a confecção de fantasias e carros alegóricos. Podemos expandir o olhar e observar outras manifestações populares associadas à cultura carnavalesca, como os grupos de “Bate-Bolas”, também chamados de “Clóvis”, que ocupam as ruas, com fantasias de palhaço, especialmente dos subúrbios do Rio de Janeiro em época de carnaval, em áreas como Madureira, Marechal Hermes, Oswaldo Cruz, Guadalupe e na Zona Oeste. O que temos aí, como nos blocos de rua e nas escolas de samba, são pessoas se mobilizando, se organizando, arranjando soluções criativas e inovadoras, a partir da criação “por baixo” de distintas redes de sociabilidade e circuitos solidariedade.

Diante deste cenário, é possível se falar de uma sociedade insolidária, desorganizada e desmobilizada? Pelo contrário. O carnaval é o momento no qual essas redes se potencializam, fortalecendo aquilo que tenho chamado, em diálogo com Jürgen Habermas e Nancy Fraser, de “esferas públicas subalternas”.[1] Os discursos, porém, que emergem dessas esferas públicas subalternas não são necessariamente aqueles crítico-racionais característicos do modelo de esfera pública habermasiana, caracterizando-se antes como atos de fala permeados de elementos mais bakhtinianos, expressivistas, lúdicos, ancorados mais em performances associadas a uma tradição expressivista plural, marcada pela inventividade, pela imaginação e pela criatividade. Para permanecer na chave do diálogo com Habermas, essas esferas públicas subalternas carnavalescas estão permanentemente sob a ameaça de colonização pelos subsistemas econômico, associado ao mercado, e administrativo, relacionado ao Estado, com seus respectivos meios de integração sistêmica dinheiro e poder, que tendem a enfraquecer suas ações comunicativas criativas, agregadoras e subversivas. A criação de “cercados vips” para dividir o público nos blocos de rua pode ser interpretada nessa direção de colonização, ao passo que o decreto recentemente assinado pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, que proíbe o uso de cordas e as exigências do uso de abadás, deve ser lido em uma direção contrária, buscando preservar a ocupação democrática, não hierarquizada e festiva do espaço público.

Não se trata aqui de uma idealização acrítica do carnaval, enxergando em suas dinâmicas discursivas e organizativas apenas elementos virtuosos. Reconhece-se, por óbvio, discursos e práticas violentas, racistas, machistas e homofóbicas, que atravessam a cultura carnavalesca, e que não podem ser secundarizadas por qualquer analista que se dedique ao tema. Mas, esses discursos e práticas, é importante reconhecer, estão presentes na sociedade como um todo, não sendo exclusivas do carnaval. Não buscamos, é claro, apresentar o carnaval como a panaceia para a solução dos problemas do país. Trata-se, de um lado, de problematizar as interpretações que compreendem o carnaval apenas como gasto perdulário, como se a sua suspensão fosse resolver todos os problemas enfrentados pelo país; e, por outro, demonstrar que a experiência carnavalesca brasileira contém uma enorme potência em seu conteúdo e em sua forma, que expõem as possibilidades no sentido de pensar o carnaval como uma necessária epidemia para o mundo contemporâneo atravessado pela epidemia da exclusão, da separação entre os diferentes e da apropriação segregada e desigual do espaço público.

Como já dizia Vinicius de Moraes na bela canção “Marcha de Quarta-Feira de Cinzas”, “E, no entanto, é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade”.

[1] Sobre as esferas públicas subalternas, ver: PERLATTO, Fernando. “Seletividade da esfera pública e esferas públicas subalternas: disputas e possibilidades na modernização brasileira”. Revista de Sociologia e Política, v. 23, p. 121-145, 2015.

* Fernando Perlatto é um dos editores da Revista Escuta.

** A foto que acompanha a imagem foi produzida por José Medeiros. Ela foi retirada do site: http://fotografia.ims.com.br/sites/Thumbnail.ThumbnailServlet?recordView=recordCollectionThumbnailView&catalogID=3&recordID=5729&border=0&field={af4b2e0a-5f6a-11d2-8f20-0000c0e166dc}&imageSize=400&quality=8&random=1458418260466