Mayra Goulart e Guilherme Leme**

No dia 7 de outubro de 2018, o mundo político ficou assombrado pelo resultado alcançado nas eleições por Jair Bolsonaro e outros que dele se aproximavam em termos discursivos. Os 49 milhões de votos em Bolsonaro para presidente se multiplicam quando contabilizamos os demais candidatos eleitos na onda bolsonarista, dentre eles os 52 deputados que concederam ao, até então inexpressivo, PSL o posto de segunda maior bancada da Câmara dos Deputados. Resultados como o de Wilson Witzel (PSC-RJ) e Romeu Zema (Novo- MG), que há uma semana da eleição marcavam um dígito nas pesquisas eleitorais e passaram para o segundo turno com mais de 40% dos votos válidos também deixaram claro a força avassaladora no terreno eleitoral do fenômeno que chamamos de bolsonarismo.[1]

Tal fenômeno chacoalhou a ordem do sistema político brasileiro, inundando os níveis federal e estadual com políticos de primeiro mandato, sem identidade ou programa partidários e se vinculando diretamente à imagem de Bolsonaro. Mais do que isso, o bolsonarismo (entendido aqui como conjunto heterogêneo de atores que orbitavam os discursos do presidente) se tornou a maior força no Congresso Nacional. Os votos que conquistou, apesar de diversificados entre classes sociais, foram capturados em sua maioria dos partidos tradicionais de centro-direita, PMDB e PSDB, que perderam 32 e 25 cadeiras na Câmara respectivamente em relação a 2014[2]. O pólo político pelo qual esses dois partidos transitavam se estreitou entre a esquerda e as forças identificadas com Bolsonaro, que, após a vitória presidencial, se espraiaram para além do PSL, abarcando parlamentares de diversos partidos, interessados na participação no governo.

Se fiando em sua alta popularidade e na falta de uma oposição forte, principalmente devido à congruência das forças de centro-direita com sua agenda econômica, Bolsonaro desafiou o  presidencialismo de coalizão[3],enquadramento lógico utilizado para compreender a relação entre Poderes a partir de um sistema de trocas (de recursos/acesso à máquina pública) e negociação (de agenda/programa) entre os partidos que integram o governo, se comprometendo a apoiar seus projetos no Legislativo. Neste sistema, há partilha de poder entre as diferentes forças e segmentos sociais, organizadas nos partidos que compõem a coligação. Tal partilha se dá por meio da distribuição de cargos nos Ministérios e Secretarias que, embora obedeça critérios de proporcionalidade em relação ao tamanho das bancadas, também contempla os interesses e afinidades desses segmentos sociais, cuja participação no governo é proporcionada através desse sistema.

Sob essa perspectiva, Bolsonaro, no início de seu mandato, não demonstrou interesse em formar um governo enquanto coletivo de diferentes forças políticas reunido em torno de uma agenda negociada entre diferentes grupos sociais. Não foi estabelecido um arco de alianças estável entre partidos, isto é, uma coalizão de governo, mas um sistema pontual de trocas, realizado quando ocorrem votações consideradas estratégicas, sem que haja qualquer tipo de concessão programática ou partilha de poder. Nesse sistema, os principais instrumentos são as emendas parlamentares, distribuídas individualmente, contornando a mediação dos partidos enquanto mecanismos de articulação coletiva que, se por um lado diminuem os custos das transações, na medida em que são feitas no “atacado”, por outro, aumentam as chances de que as trocas não sejam apenas pecuniárias, contemplando também negociações sobre o conteúdo das propostas.

Esse sistema foi “aperfeiçoado” a partir de 2019 com a adoção de mecanismos para agilizar e flexibilizar a alocação das verbas nos destinos indicados pelos parlamentares. Através de uma emenda constitucional aprovada no final do ano, foi criado o mecanismo denominado de transferências especiais, que permitiu aos parlamentares repassar até metade de sua cota de emendas individuais por depósito direto. Em 2021, isso representará cerca de R$ 8 milhões por parlamentar, que sequer precisam indicar qual será a destinação exata da verba, mas apenas o nome da cidade que deve recebê-lo, e os recursos caem direto na conta da prefeitura[4]. Já na discussão do Orçamento 2020, incluiu-se cerca de R$ 3 bilhões através do instrumento das “emendas de relator”, que, originalmente serviriam para introduzir alterações de caráter técnico. Na prática, o dispositivo serviu para criar uma espécie de “orçamento paralelo”, com a destinação dos recursos sendo previamente acordada com os parlamentares da base aliada.[5]

Nessa atualização autoritária do padrão de governança denominado como presidencialismo de coalizão existe alguma eficiência, afinal o governo foi capaz de eleger seus aliados para as Presidências das duas Casas Legislativas. Há também capilaridade, pois, o governo federal consegue arregimentar um exército de aliados no Congresso Nacional através de um sistema que se enraíza nos municípios, garantindo-lhe também base eleitoral. Porém, uma vez que construído em termos estritamente pecuniários, nesse sistema não há distribuição de poder ou uma construção coletiva de agenda. Não há diálogo em termos programáticos. Aos ministros e ocupantes dos cargos não é facultada a possibilidade de divergência ou persecução de um programa alternativo e que represente outros pontos de vista, outros grupos e identidades sociais.

Aliás, não há um programa propriamente dito. Não há projeto de nação que contemple as questões macroeconômicas e políticas determinantes para o desenvolvimento, mas há, por parte de Bolsonaro e seus seguidores, uma forte convicção sobre alguns temas: família, segurança e, desde 2020, pandemia. Nesses pontos é que se observa uma das mais determinantes feições do extremismo: o monismo enquanto rejeição do dissenso e do pluralismo de ideias e formas de vida.

No tocante à COVID-19, o negacionismo passa ser incluído no núcleo semântico do bolsonarismo, enquanto amálgama discursivo antipopular desde sua origem. Este é o elemento de divergência existencial entre os dois projetos de país que disputam hegemonia na sociedade. O de Bolsonaro, construído em prol dos mais fortes econômica (empresários, profissionais liberais, agentes do mercado) e fisicamente (agentes de segurança pública e privada, dentre os quais se incluem a milícia). O de Lula e do Partido dos Trabalhadores, produto de uma agenda construída pelo PT em conjunto com diferentes forças políticas e sociais, que reivindica uma transformação nessa hierarquia através do protagonismo de grupos historicamente marginalizados, como mulheres, pretos, LGBTQIA+ e a classe trabalhadora em geral.

A disputa entre esses dois projetos ganha novos contornos a partir de 2020. A chegada da pandemia de Covid-19 confina boa parte dos brasileiros em casa e aumenta consideravelmente a audiência do jornalismo nos meios de comunicação, especialmente na televisão[6]. A postura negacionista da pandemia por parte do presidente, seguindo a de Donald Trump, agora acompanhada dia após dia por grande parte dos brasileiros, provoca “panelaços” e aumenta sua rejeição junto com a curva de mortes diárias. Segundo dados do Datafolha[7], ela aumentou de 26%, em 20 de março (quando tínhamos 2 mortos por semana), para 39%, em 3 de abril (média de 38 mortes por semana), e 44%, em 24 de junho (média de 1.046 mortes por semana)[8]. A sua aprovação permaneceu no mesmo patamar, oscilando de 35% para 32% no mesmo período.

Mas essa alta na rejeição de Bolsonaro não pode ser contabilizada apenas pela má condução do combate à pandemia. Um dos pilares mais fortes da narrativa que ganhou a eleição, a luta contra a corrupção, começou a ruir com o pedido de demissão de Sérgio Moro do Ministério da Justiça em 24 de abril. Moro alegou ter sido pressionado a trocar o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro em benefício do filho do presidente, Flávio Bolsonaro, investigado pela PF no caso das “Rachadinhas”. Na mesma investigação, a prisão de Fabrício Queiroz no escritório de Frederick Wassef, advogado da família Bolsonaro, em 18 de junho, também representou grande dano à imagem do presidente junto aos segmentos da classe média que engrossaram as fileiras do bolsonarismo atraídos pelo antipetismo, entendido aqui como amálgama entre os sentimentos anticorrupção e os ressentimentos causados pelo empoderamento das classes populares.

A estratégia de Bolsonaro foi a de agir para não perder a sua base de apoio nuclear. Intensificou suas aparições públicas buscando chamar a atenção e demonstrar não estar acuado. Em 4 de março, levou um humorista fantasiado para falar em seu lugar aos jornalistas no dia do anúncio do resultado pífio do PIB 2019 (1,1%), além das mais infelizes aparições nas manifestações clamando por ditadura, em 31 de março e 19 de abril. Reagindo à operação da PF autorizada por Alexandre de Moraes no inquérito que apurava ataques ao STF, Bolsonaro chega ao auge dessa tática: “Acabou, porra!” grita em afronta no dia 28 de maio. Na véspera, seu filho Eduardo havia afirmado que o “momento de ruptura” não era uma questão de “se” mas “quando” iria acontecer[9].

Embora mantivesse essa postura beligerante perante o público, entre as elites políticas Bolsonaro aprofundou o sistema de trocas no varejo, aproximando-se do centrão – aqui entendido como o conjunto de Deputados Federais sem orientação partidária ou ideológica determinante e que pode orbitar diferentes projetos a depender das perspectivas de recursos e cargos.

A alta fragmentação do sistema político brasileiro (33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral e 27 com representação no atual Congresso Nacional) e a consequente dificuldade de uma aliança programática de partidos obter sozinha a maioria dos assentos no parlamento proporciona a esse conjunto de deputados uma relevância ímpar na formação de governos desde a redemocratização. O centrão, que esteve ao lado de Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma, começa a ser acolhido também por Jair Bolsonaro.

Através de nomeações no governo, o presidente procurou agradar esses deputados e se resguardar de um eventual processo de impeachment, cujos pedidos já se acumulavam na mesa de Rodrigo Maia, cada vez menos confortável na relação com Bolsonaro. Essa relação com o centrão ficou mais estreita com o esforço do Planalto para derrotar o candidato de Rodrigo Maia, Baleia Rossi (MDB) e eleger Arthur Lira e Rodrigo Pacheco presidentes da Câmara e do Senado este ano. Grande parte dos votos que elegeram os candidatos apoiados por Bolsonaro pode ser atribuída à efetivação dos repasses de recursos aprovados nas “emendas de relator” ao Orçamento 2020, mencionadas anteriormente.

Nesse cenário acontece a repentina decisão de Edson Fachin, a nosso ver o elemento mais determinante na alteração da correlação de forças que até então pendia de modo determinante em favor do projeto bolsonarista. Em 8 de março, o relator dos processos da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal decreta a nulidade de todas as condenações de Lula na 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, com a justificativa técnica de inadequação do foro, cinco anos depois de a defesa alegar o mesmo. Essa medida foi lida por muitos como manobra para salvar a reputação de Sérgio Moro e da Lava-Jato, após o vazamento das conversas do ex-juiz com os procuradores e a posterior disponibilização do material original apreendido na Operação Spoofing à defesa do ex-presidente, por ordem do ministro Ricardo Lewandowski. Com o julgamento da suspeição de Sérgio Moro no STF ainda em aberto, e com a possibilidade desses elementos serem admitidos como provas, Fachin tenta extinguir o processo, decidindo pela sua perda de objeto, protegendo Moro de ser declarado suspeito e de ter todas as suas instruções no processo anuladas. Como sabemos, a manobra não prosperou, e, pela ação da 2ª turma do STF, Sérgio Moro foi declarado suspeito no caso de Lula, em 23 de março, com a confirmação em plenário no mês seguinte.

Esse acontecimento inaugura uma nova fase nessa luta hegemônica. Com a possibilidade de ter Lula de volta na Presidência da República em 2022, as forças do campo oposicionista começam a se organizar em torno de um projeto eleitoral com chances efetivas de vitória. A decisão reabilita politicamente o PT, maior partido na Câmara Federal e o credencia a reivindicar novamente o papel de campo aglutinador do sistema político brasileiro. Ademais, a possibilidade de se aproximar de um novo hegemon e lograr das benesses dessa proximidade começa a fazer parte dos cálculos de lideranças do centrão. Maquiavel já dizia que um Príncipe cujo poder não se fia em suas próprias forças não pode dormir tranquilo, pois sua fortuna pode mudar a qualquer momento e seu destino depender de outros atores. O governo Bolsonaro, em sua nova configuração, se apoiando como nunca em forças políticas “independentes” expôs um flanco em sua formação. Caso o centrão se convença do favoritismo e das perspectivas de um futuro governo Lula, pode transformar Bolsonaro naquilo que chamamos de “pato manco”: um governo cujo apoio social e político se erode antes de seu fim.

Em suas declarações após a anulação de sua condenação, Lula não economiza nas críticas ao projeto de Bolsonaro, principalmente em relação ao combate à pandemia e à condução da economia. Esse discurso, no entanto, vai além de um simples denuncismo. Ele o faz de uma posição concorrente e antagônica (apesar de não admitir ser candidato), comparando o governo atual com os bons anos do PT: “Você não sabe como eu ficava feliz quando eu via um trabalhador mostrar uma picanha e falar: “Eu vou comer picanha e vou tomar uma cerveja!”[10]. Nas entrevistas concedidas para a CNN Internacional[11] e para o Le Monde[12] em 17 e 19 de março respectivamente, as perguntas realizadas, seu discurso, e a própria relevância dos veículos nos dão a dimensão da figura de Lula e a simpatia que seu projeto desperta na opinião pública internacional, conquistada nos seus anos de Presidência e preservada até hoje, apesar da sua prisão na Lava-Jato e da campanha crítica feroz dos principais jornais do país[13].

Lula, em seu discurso, tomado no evento de 10 de março no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e na entrevista para Reinaldo Azevedo[14] em 1º de abril, além das entrevistas internacionais supracitadas, busca dialogar com a base social mais ampla possível. Não menciona medidas de isolamento social mais drásticas, como o lockdown, mas ataca duramente a demora na aquisição das vacinas, tema de maior consenso na opinião pública e de críticas ao governo da esquerda à direita. Defende também como prioridade o Auxílio Emergencial de R$ 600,00 e medidas como o crédito às micro e pequenas empresas e investimento em infraestrutura para a saída da crise econômica e geração de empregos. Já em questões não relacionadas à pandemia, ataca principalmente a relação de Bolsonaro com as milícias e seu esforço pela liberalização de armas, estabelecendo uma oposição clara destas com as vacinas e a valorização da vida. Lula, assim, ataca outro flanco delicado para Bolsonaro, pois o assunto não é unanimidade em sua base de apoio, tensionando principalmente seu eleitorado cristão[15].

Na economia, Lula defende o Estado como indutor do desenvolvimento, pela atuação do BNDES, fortalecimento da Petrobras e uma política orientada para a reindustrialização do país. Busca conciliar essa visão, no entanto, com abertura para o diálogo com o setor privado. Deixa claro que deseja reeditar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, conhecido como “Conselhão”, que reunia, além de sindicatos, os presidentes das maiores empresas do Brasil. Além disso, admite a abertura de capital de empresas hoje 100% estatais, como a Caixa, e também a privatização de outras “não-estratégicas”[16]. Essa posição conciliatória parece confortável para Lula, citando inclusive os ganhos do mercado financeiro nos anos de seu governo.

O diálogo também é a palavra de ordem nas articulações dentro do sistema político para a superação da crise. “O povo elegeu quem ele quis eleger. Nós temos que conversar com quem está lá para ver se a gente conserta esse país.”, disse em seu discurso no ABC. Nesse sentido, defende uma política de alianças ampla para o PT, mencionando frequentemente o sucesso da parceria com José Alencar e setores de inspiração liberal em seu governo. A disposição para viabilizar o diálogo e permitir a reedição de uma aliança majoritária para o futuro se expressa não apenas no que Lula diz, mas, também, no que ele não fala. Passa batido pelo trauma político do impeachment de Dilma Rousseff, a maior ruptura institucional em pelo menos 24 anos, promovido, em sua maioria, por seus antigos partidos aliados. Também silencia sobre o apoio da grande maioria do Congresso à “reforma” da Previdência e a quase todas as pautas liberalizantes do governo Bolsonaro.

Esse esforço para não queimar pontes tem funcionado e sido de mão dupla. Lula recebeu, desde a decisão de Fachin, uma enxurrada de declarações elogiosas de importantes líderes políticos brasileiros. Rodrigo Maia tuitou após a decisão de Fachin: “Você não precisa gostar do Lula para entender a diferença dele para o Bolsonaro. Um tem visão de país; o outro só enxerga o próprio umbigo. Um defende a vacina, a ciência e o SUS; o outro defende a cloroquina e um tal de spray israelense”[17]. Os dois se encontraram no dia 5 de maio em Brasília. Renan Calheiros (MDB), relator da CPI da Covid-19 no Senado foi além e já deixou claro que fará campanha pela aliança de seu partido com Lula em 2022[18].

Além da disposição para o diálogo com forças à direita, na política e na economia, Lula também exerce força de atração sobre setores do “centrão” pelas críticas compartilhadas à Lava-Jato. A maioria das denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal contra parlamentares com foro privilegiado no âmbito da operação ainda não foram analisadas pelo Supremo Tribunal Federal, e há certa expectativa de que a desmoralização da operação, confirmada com a decisão que considerou Sérgio Moro suspeito no caso de Lula, ajude a estratégia dos advogados das dezenas de políticos denunciados. Ter espaço no governo para se defender publicamente e institucionalmente das acusações é vital para sua sobrevivência política, e a associação com Lula, após a anulação de seus processos, parece um caminho muito mais promissor hoje do que foi durante os últimos sete anos junto ao eleitorado. Arthur Lira, presidente da Câmara eleito pela ação do Planalto, e também denunciado no Supremo pela Lava-Jato, nos ilustra bem o argumento: “Minha maior dúvida é se a decisão monocrática [de Fachin] foi para absolver Lula ou Moro. Lula pode até merecer, Moro jamais!”[19].

Essa força gravitacional que Lula exerce sobre o centro é a maior ameaça ao governo Bolsonaro e às suas chances de reeleição, além de ter aumentado o custo das negociações com os parlamentares, os efeitos desse movimento já podem ser sentidos nas indicações do colegiado do Senado para a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, determinada por Ricardo Lewandowski. Partidos em sua maioria alinhados com o governo Bolsonaro, como o MDB, indicaram senadores de estados muito afetados pela pandemia, como o Amazonas, ou não muito simpáticos ao presidente, como Renan Calheiros, ao qual cabe a relatoria da comissão.

Enquanto a CPI dava os primeiros passos, já com depoimentos que deixam inequívoca a responsabilidade do presidente no desastre da pandemia no Brasil, Lula também já arregaçou as mangas e partiu para Brasília para botar o tal diálogo em prática. Entre 3 e 8 de maio conversou com Marcelo Freixo, Fabiano Contarato, Eunício Oliveira, Kátia Abreu, Gilberto Kassab, Rodrigo Maia, Paulinho da Força e José Sarney, além de diversos parlamentares do próprio PT e embaixadores da Alemanha, Argentina e Reino Unido. Num dos primeiros resultados práticos, o PSD de Gilberto Kassab anunciou que planeja ter candidato próprio para o Planalto em 2022. O partido hoje compõe a base do governo Bolsonaro, com 92% de alinhamento de seus parlamentares nas votações na câmara[20] e ocupando o Ministério das Comunicações, com Fábio Faria.

A julgar pelas atitudes do presidente a partir da instalação da Comissão, convocando novamente manifestações antidemocráticas, requentando uma crise diplomática com a China através de declarações estapafúrdias[21], e xingando publicamente Lula e Renan Calheiros[22], o que parece restar a Bolsonaro é um copia e cola da mesma tática do ano passado: manter o bolsonarismo vivo. Com a volta ao jogo de Lula, mais do que comprovada pelos resultados do Datafolha do dia 12 de maio[23] (primeira pesquisa de opinião presencial desde o início da pandemia), Bolsonaro apostará em afastar as ameaças de impeachment decorrentes das investigações da CPI e em manter o apoio do mercado financeiro, enquanto principal avalista de seu governo, para chegar vivo em 2022. Daí os esforços de, em meio a uma pandemia sanitária e social, fazer avançar a Reforma Administrativa, importante demanda da cartilha neoliberal e das elites econômicas. As mesmas que, em 2018, quando perceberam que a vitória de um nome da direita tradicional (Geraldo Alckmin) não seria possível, apoiaram um candidato declaradamente autoritário, que por mais de duas décadas vociferou bravatas nostálgicas à ditadura militar[24]. Do outro lado, estarão as forças sociais antibolsonaro, que já ensaiam a volta às ruas, como pudemos testemunhar nas manifestações antirracistas do dia 13 e em defesa das universidades federais em 14 de maio. A intensificação das manifestações com o avanço da vacinação e o relatório final da CPI da Covid prometem um segundo semestre quente.

Notas:


[1] Os dados utilizados foram consultados em: https://placar.eleicoes.uol.com.br/2018/ e em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/eleicoes/2018/noticia/2018/10/06/ibope-governador-rio-de-janeiro-votos-validos-paes-32-romario-20-indio-e-witzel-12.ghtml. Acesso em 05/05/21.

[2] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/pt-perde-deputados-mas-ainda-tem-maior-bancada-da-camara-psl-de-bolsonaro-ganha-52-representantes.ghtml. Acesso em 05/05/21.

[3] ABRANCHES, Sérgio Henrique. O presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados: revista de ciências sociais. Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 1988.

[4] https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/toffoli-pede-explicacoes-de-bolsonaro-pacheco-e-lira-sobre-emendas-cheque-em-branco.html. Acesso em 06/05/21.

[5] Ver https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,planalto-libera-r-3-bi-em-obras-a-285-parlamentares-em-meio-a-disputa-no-congresso,70003597254. Acesso em 06/05/21.

[6] https://www.terra.com.br/diversao/tv/blog-sala-de-tv/covid-19-faz-globo-ter-melhor-audiencia-dos-ultimos-10-anos,d638f21eaa4d74d10ef17664f066cb91wzru9spx.html. Acesso em 05/05/21.

[7] Consultados em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/17/44percent-reprovam-governo-bolsonaro-e-30percent-aprovam-aponta-pesquisa-datafolha.ghtml. Acesso em 05/05/21.

[8] Os dados sobre mortes foram colhidos do repositório da universidade Johns Hopkins. Disponível em: https://github.com/CSSEGISandData/COVID-19. Acesso em 05/05/21.

[9] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/28/deputado-eduardo-bolsonaro-cogita-necessidade-de-medida-energica-do-presidente.ghtml. Acesso em 05/05/21.

[10] Trecho do discurso de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo-SP, em 10/03/21. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/03/10/leia-a-integra-do-primeiro-discurso-de-lula-apos-anulacao-de-condenacoes-da-lava-jato. Acesso em 06/05/21.

[11] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=A8oFAIer5SA. Acesso em 06/05/21.

[12] Disponível em: https://lulalivre.org.br/2021/03/19/inedito-leia-aqui-a-entrevista-completa-de-lula-ao-le-monde-da-franca/. Acesso em: 06/05/21.

[13] Estudo recente de João Feres Júnior, “Cerco Midiático: O lugar da Esquerda na esfera ‘publicada’”, analisando a cobertura da Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo no período de 2014-2020, encontra elementos que permitem concluir uma clara oposição desses veículos a Lula e aos governos PT. Disponível em: https://brasil.fes.de/detalhe/cerco-midiatico-o-lugar-da-esquerda-na-esfera-publicada.

[14] Disponível em: https://youtu.be/vlvjciPQrq4. Acesso em 06/05/21.

[15] https://oglobo.globo.com/brasil/bancada-evangelica-resiste-decretos-das-armas-contradicao-com-valores-religiosos-24885845. Acesso em 10/05/21.

[16] Declaração concedida na entrevista a Reinaldo Azevedo em 01/04/21.

[17] https://twitter.com/rodrigomaia/status/1369680085356318725. Acesso em 05/05/21.

[18] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-renan-calheiros-defende-cpi-da-covid-e-candidatura-de-lula-em-entrevista-ao-dcm/. Acesso em 05/05/21.

[19] https://oglobo.globo.com/brasil/arthur-lira-lula-pode-ate-merecer-moro-jamais-24915187. Acesso em 05/05/21.

[20] De acordo com o levantamento do portal Congresso em Foco, atualizado em 23/04/21. Disponível em: https://radar.congressoemfoco.com.br/governismo/camara. Acesso em 16/05/21.

[21] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/05/05/bolsonaro-virus-china.htm. Acesso em 05/05/21.

[22] https://veja.abril.com.br/blog/maquiavel/em-alagoas-bolsonaro-chama-renan-de-vagabundo-e-lula-de-ladrao/. Acesso em 13/05/21.

[23] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/datafolha-lula-lidera-corrida-eleitoral-de-2022-e-marca-55-contra-32-de-bolsonaro-no-2o-turno.shtml. Acesso em 13/05/21.

[24] Nossa pesquisa em andamento no LAPPCOM identificou, através da sistematização de discursos e projetos de lei da trajetória legislativa de Jair Bolsonaro (1991-2017), as saudosas referências à ditadura como uma das constantes e prioridades de sua atuação pública.

*Os argumentos deste artigo foram desenvolvidos a partir do debate “O bolsonarismo em crise? Notas sobre a conjuntura”, organizado pelo Laboratório de Eleições, Partidos e Política (LAPPCOM), núcleo de pesquisa vinculado ao Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (DCP/UFRJ) e ao Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ).

** Mayra Goulart é coordenadora do Lappcom e professora do DCP/UFRJ e do PPGCS/UFRRJ, Guilherme Leme é membro do Lappcom e aluno de Relações Internacionais da UFRJ.