Jorge Chaloub*

Se este fosse um fio no Twitter, talvez fosse o caso de começá-lo, como modo de ganhar alguns corações, com o irritante chavão “precisamos falar sobre o centrão”. A questão não passa, todavia, pela quantidade de textos e menções ao termo. Fala-se muito sobre o centrão, que se tornou, aliás, um dos termos mais utilizados para a análise da política brasileira contemporânea. Frequentemente se atribuem a ele características ambíguas e uma capacidade explicativa quase irrestrita, que em alguns casos se confunde com o próprio sistema político brasileiro: o centrão seria a forma “típica” da política brasileira. A partir  das narrativas mais corriqueiras, vê-se a imagem de um personagem ao mesmo tempo coeso, sendo capaz de pautar a política nacional, e facilmente cooptado por pequenos interesses individuais de parlamentares, marca de um “fisiologismo” que supostamente implicaria na ausência de identidade ideológica ou contrariaria certa narrativa da “responsabilidade fiscal”. Sigamos alguns desses argumentos.

Um primeiro pressuposto corrente representa o centrão como uma massa amorfa, guiada apenas por interesses políticos imediatos, sobretudo financeiros, sem maior preferência política. Não seria possível, assim, taxá-lo como de direita ou esquerda, mas sim qualificá-lo como “pragmático”, “fisiológico” ou “patrimonialista”. Adjetivos que apontam para vários lugares, mas dizem muito pouco. Interpretações contemporâneas de prestígio, como a de Marcos Nobre, reforçam o ponto a partir do seu conceito de “peemedebismo”, que sugere um insulamento da classe política em relação à sociedade,  marca de dinâmica de conservação da ordem estabelecida na redemocratização. As Jornadas de Junho de 2013 teriam inaugurado um novo momento, no qual o “social-desenvolvimentismo” do pós-88 entraria em choque com demandas da sociedade civil. Nobre, todavia, funda sua interpretação a partir de dois esquematismos que prejudicam uma melhor compreensão do lugar do parlamento, e, portanto, do centrão, na política brasileira contemporânea. Por um lado, ele cria uma oposição esquemática entre Estado e sociedade civil, como marcados por lógicas diametralmente diversas[1], por outro parece naturalizar uma interpretação da ação política como limitada ao cálculo instrumental, de modo que mesmo os valores seriam traduzidos em cálculos econômicos pragmáticos. Sua interpretação é certamente mais sofisticada do que média das análises políticas, mas expõe com clareza fundamentos por elas compartilhados.

O pragmatismo é certamente um dos lados do grupo parlamentar, e não somente dele, mas está longe de dar conta das suas ideias e ações. O centrão tem lado claro na disputa política da sociedade brasileira: a direita. Pragmaticamente ele pode apoiar governos mais progressistas, como ocorreu no governo petista, mas há uma adesão fundamental a elementos classicamente conservadores, em parte por meio do que o grupo propõe, mas sobretudo através do seu poder de veto, ponto aliás bem exposto por Nobre, contra projetos progressistas vinculados à classe trabalhadores, aos movimentos negro, LGBT, feminista e à questão ambiental.

O  bolsonarismo expôs, todavia, que o centrão e o sistema político são bem menos insulados do que Nobre supunha. Com forte papel do agronegócio, da banca da bala e grande representação neopentecostal e católica conservadora, sua base social  influi em grande parte das suas ações e feições. Ou seja, mesmo que estejamos diante de um ator que se constitui e movimenta no parlamento, não é possível reduzir sua força apenas às astúcias do jogo congressual de um sistema político isolado.

Como consequência da ideia de um pragmatismo de curto prazo, que apenas buscaria se apropriar de recursos do Estado, grande parte dos analistas pressupõe uma contradição entre o centrão e a “responsabilidade fiscal”. A adesão irrestrita de boa parte da grande mídia ao campo do liberalismo econômico faz com que ela identifique naturalmente certas premissas do papel do Estado com a “modernidade”, a qual estaria, por tal perspectiva, em campo completamente oposto das práticas do centrão, típicas do “atraso”. Nada mais enganoso.

O centrão já percebeu a força deste discurso público e, distintamente de boa parte dos colunistas econômicos dos grandes jornais, compreende que o orçamento público é objeto de uma disputa distributiva, na qual é possível se vender a responsabilidade fiscal por meio da redução de recursos para políticas sociais, do sucateamento do funcionalismo público e da destruição da capacidade de intervenção do Estado, enquanto se mantém em suas mãos os recursos das emendas parlamentares.

Há, ademais, afinidades entre certo discurso neoliberal e os ideais de grupos relevantes do centrão, ambos críticos das excessivas competências e intervenções do Estado. Se, por um lado, alguns intelectuais orgânicos neoliberais retratam um aparelho estatal que sufocaria a livre-empresa e o indivíduo empreendedor, há, por outro, um discurso neoconservador, hegemônico em grupos relevantes do centrão, que pretende liberar a família dos controles do Estado, caso da Bancada da Bíblia; permitir ao indivíduo um irrestrito acesso às armas para sua autodefesa, como na narrativa da Bancada da Bala; ou retirar as proteções estatais ao meio ambiente e ao uso de agrotóxicos, de acordo com os interesses da Bancada do Boi. Não se trata de tema inovador, mas de arranjo já exposto, em outros contextos, por autoras como Melinda Cooper e Wendy Brown.

Um segundo pressuposto, que contradiz alguns aspectos do primeiro, aponta para a unidade do centrão, que agiria como ator coeso, próximo a um partido político. Creio, todavia, que se trata de grupo muito menos coerente e homogêneo do que as análises supõem. Se ele não se reduz ao Congresso, como eu mencionei acima, é claro que sua unidade decorre em boa medida da dinâmica parlamentar, que ganhou força em um momento posterior à presidência Eduardo Cunha e da construção de uma coalizão política antiesquerdista no Brasil.

O centrão, neste sentido, surge como um grupo heterogêneo agregado em parte por interesses corporativos de curto prazo, mas também constituído como ator coletivo por bancadas fortemente refratárias a pautas de esquerda nos mais diversos pontos, como direitos de minorias, questão ambiental, segurança pública, dentre outros. Entre a bancada da bíblia, da bala, do boi e demais grupos temáticos que o compõe, há uma oposição a elementos da ordem de 1988 que são vistos como progressistas, por vezes até mesmo comunistas, mas que usualmente tratam da expansão de direitos individuais e coletivos. Se há descontinuidades entre o centrão “original”, surgido no plenário da Assembleia Constituinte, e o pós-2015 no que se refere à origem política dos seus líderes, que antes pertenciam ao “alto clero” e agora frequentam as sacristias do “baixo clero”, há clara continuidade em relação à resistência do grupo às dinâmicas de democratização da carta constitucional de 1988.

Como toda frente constituída a partir da oposição a atores ou valores, não há apenas sintonias, mas também dissonâncias. Distintamente do que certo senso comum midiático sugere, o centrão não age sempre como bloco unitário, nem possui uma identidade semelhante à de um partido político. Em contextos diversos, nada impede sua cisão em relação a temas específicos.

 Isso, todavia, não o impede de ocupar um lugar à direita do cenário político contemporâneo ou de ter maiores afinidades políticas com certos atores e grupos sociais. O centrão expressa os acessos desiguais de grupos sociais ao Parlamento. Seu   pragmatismo não contraria uma sociedade civil virtuosa, mas revela suas desigualdades e expõe os vínculos entre ideias e interesses em um capitalismo periférico, atravessado por dinâmicas de violência e por uma profunda dificuldade de implementar direitos. Se os cálculos de curto prazo o levam a ingressar em barcos alheios antes do seu afundar, isso não implica em tomá-lo como um navegador à deriva, sem quaisquer preferências por determinados postos ou destinos.

*Jorge Chaloub é um dos editores da Escuta.

Imagem disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/meio-ambiente/centrao-e-centro-direita-sao-maiores-ameacas-ao-meio-ambiente-no-congresso/


Notas

[1] Esse ponto me foi sugerido pelo amigo Pedro Lima.