João Dulci*

Certa vez escrevi aqui que nunca nutri grande apreço pelo pachequismo que mobiliza símbolos nacionais como sinal inequívoco de amor ao Brasil. Quando os movimentos de verde e amarelo começaram a sair às ruas, timidamente em 2013 e de forma escancarada em 2014, as camisas da seleção brasileira, com um escudo de um dos órgãos mais corruptos do país no peito esquerdo, encheram as ruas como uma indumentária identitária de um espectro ideológico da população. Mas isso pouco me tocou. Não foi a primeira vez que o nacionalismo foi usado como justificativa para movimentos à margem da legalidade. Em 2014, embora denso, o movimento verde e amarelo perdeu as eleições. Entre 2015 e 2016, se avolumou, criando a narrativa do impeachment, sendo bem sucedido em suas intenções. Não cabe aqui análises mais específicas sobre isso. Muitas já foram feitas, inclusive por mim, nesta revista. Fato é que, em 2018, o verde e amarelo ganhou as eleições e levou ao cargo presidencial Jair Messias Bolsonaro, codinome “Mito”. Em dezembro do ano passado, a convite da Sociedade Esportiva Palmeiras, “Mito” adentrou o gramado do estádio esmeraldino para, mesmo trajando uma bolsa de colostomia, entregar uma pesada taça de campeão brasileiro ao clube da Barra Funda.

À época os programas esportivos debateram o tema, mas as conclusões passavam um pouco pelo argumento “o clube que convidou”; “o clube é livre para convidar”;  “Bolsonaro é palmeirense”; etc. Lembro-me que o Grêmio de Porto Alegre por pouco não foi punido pelo ingresso em campo da filha de seu treinador. Mas isso já é outra história. Bolsonaro, feliz que estava com o título de seu time do coração (?), chegou a erguer jogadores do Palmeiras, demonstrando que a alegria é um dos maiores remédios que a medicina ocidental teima em negligenciar. Taça, bolsa de colostomia e Felipe Melo formavam o coquetel que “Mito” precisava para esquecer o grave atentado à sua vida (sem nenhuma ironia) e extravasar. Que ano perfeito pra ele. A vida, como costuma lembrar em todas as suas viagens internacionais, as eleições e o título do Palmeiras

Honestamente não faço ideia se nos regulamentos da CBF há algum impeditivo para o ingresso de presidentes eleitos não empossados nos gramados de suas competições. Imagino que as credenciais sejam distribuídas pelo clube mandante e que este se responsabilize por quem quer que esteja no relvado. Diante disso, tendo a concordar com as conclusões das mesas redondas. A escolha foi do Palmeiras, o Palmeiras que se vire pra lá.

Bolsonaro, deputado federal de carreira, ex-militar, costuma aparecer em suas redes virtuais com camisas de todos os clubes de futebol. Dizem pelas esquinas que torce pelo Palmeiras e pelo Botafogo, mas que tem simpatia por todos os clubes das séries A, B, C, D, módulo 2 do campeonato mineiro e torneio metropolitano de Curitiba. Pelo número de camisas de futebol que possui, poderia perfeitamente ser considerado um colecionador de respeito. Ouso dizer que sua coleção deve superar o número de times em que jogou Apodi ou as que Zagallo trocou em seus 92 anos como treinador. Bolsonaro, suas simpatias futebolísticas, seu amor pelo Palmeiras e a trajetória futebolística de Apodi são direitos inalienáveis deles e não temos muito com isso. Ou não tínhamos, até quarta-feira.

Quarta-feira costuma ser o terceiro dia depois de domingo. Domingo foi o dia em que o Intercept Brasil publicou alguns diálogos íntimos do Ministro Moro e do Procurador Deltan Dallagnol. Fontes seguras garantiam que o ex-juiz-Moro cairia naquela semana, enterrando definitivamente uma das figuras mais proeminentes do Novo Brasil. Não tenho a informação se a bíblia de Dallagnol o permite torcer para algum time de futebol, mas Moro torce. Moro torce pro Athletico Paranaense (ex-Atlético Paranaense). Como um bom homem da política, para evitar problemas com os torcedores rivais (no caso, Coritiba e Paraná Clube, além do Rio Branco da estradinha e do Arapongas), começou a correr a versão de que Moro torce para o Maringá Futebol Clube.

A escolha pelo Maringá é uma ótima saída para alguém que quer ser gostado. Não imagino que alguém acorde pela manhã sonhando com a derrota do Maringá Futebol Clube, assim como acordamos diariamente torcendo pelos milagres das derrotas do Manchester City ou do Palmeiras. Por ser um time da série D do campeonato brasileiro, o torcedor do Maringá, assim como os torcedores do América ou da Portuguesa, deve receber um tapinha nas costas, seguido da frase: torço pelo crescimento do Maringá. Ninguém perde tempo torcendo pelo crescimento do Maringá, tampouco pela sua destruição. Em Portugal, contam as anedotas políticas que todos os postulantes a primeiro-ministro ou presidente têm por característica torcerem pelo Académica de Coimbra. Apenas ditadores como Marcelo Caetano ou Salazar assumiam suas torcidas por Benfica e Belenenses. Ou seja, torcer pelo Athletico (pronuncia-se Aflético?) Paranaense, com essa grafia ainda por cima, é se colocar na vala comum das disputas futebolísticas. Negar essa torcida não parece ser problema para o ex-juiz, mesmo que corram pela internet fotos suas acompanhando, com um boné afundado na cabeça, seu não time do coração (?). Até no River x Athletico Moro foi. Não para torcer, claro.

Imagino que por coincidência Moro estivesse em Buenos Aires. Um amigo seu o telefona e diz: “tenho ingressos para River e Athletico. Você quer ir? Só há um problema: é na torcida do Paranaense”. E Moro talvez tenha respondido: “Ah, se fosse o Maringá eu iria com certeza. Mas como estou aqui sem nada pra fazer, vamos lá assistir. Espero que os coxa-branca ou os paranistas não pensem que fui torcer para o Paranaense. Isso seria terrível para mim e para meus companheiros maringaenses. Posso perder meu acesso à piscina do clube”.

Não. Não estamos diante de mais um vazamento do Intercept e o diálogo acima é totalmente ficcional. O que aconteceu na última quarta-feira foi bastante pior do que essa trivial conversa. Por uma daquelas infelizes coincidências que misturam buracos regimentais, vazamentos do Intercept, campeonato brasileiro e uma gripe mortal deste que voz aporrinha, o CSA, prevendo casa cheia, levou o seu jogo contra o Flamengo para Brasília. Bolsonaro, palmeirense, Moro, athleticano, Mourão (sim, esse é flamenguista. Nem sempre escolhemos primeiro) e Paulo Guedes (Chicago Cubs ou New England Packers, vai saber…) foram juntos ao estádio Nacional Mané Garrincha. Acometido pelos calafrios, fiquei em casa para assistir à partida que, por sorte, foi transmitida. A felicidade de ter os comentários de Júnior embalando minha febre se esvaiu com o primeiro close nas tribunas. Em questão de instantes, fui bombardeado por mensagens de whats app sobre as imagens dos burocratas vendo o jogo. Inicialmente, apenas “Mito” parecia estar prestando alguma atenção à partida, enquanto seu séquito preferia o celular (imagino que o “refresh” da turma estivesse no automático, prevendo novos vazamentos). A segunda imagem já mostrou “Mito” e o ex-juiz com camisas do Flamengo. Depois correram os vídeos de torcedores lhes atirando as camisetas. A pá de cal veio com a imagem num canal oficial do Flamengo. Diretores do clube e os membros do poder executivo ladeados. Um amigo me mandou a mensagem: desliguei a TV e parei de ver o jogo.

O Clube de Regatas do Flamengo, nascido às margens da Baía de Guanabara, apelidado em função de um holandês que remava nas águas límpidas da ponta da Rua Paissandu, em 1885, já me aprontou muitas peças. Embora eu tenha pego ainda o fim da fase áurea dos anos 1980, com os títulos do CAMPEONATO BRASILEIRO de 1987, o título da Copa do Brasil de 1990 e o PENTA campeonato de 1992, além do título invicto do estadual (sim, isso já foi importante) de 1991, os anos que se seguem são de triste memória. A teimosa bola de Marcelinho Carioca na disputa de pênaltis contra o São Paulo – Zetti de um lado, trave do outro – me deixou doente, desidratado, porque só as crianças sabem o que é sofrer por uma bola na trave numa final de campeonato. Os três títulos vascaínos (sim, isso acontecia) entre 1992 e 1994, as derrotas para o Independiente na Super Copa da Libertadores de 1995, para o Grêmio em 1997, in loco; as eliminações da libertadores para Defensor, Universidad do Chile, América do México. O enorme sacrifício para comprar o ingresso, as confusões policialescas na entrada do Maracanã e os latões quentes de cerveja na saída do estádio. As ressacas que terminariam dois dias depois, quando enfim se podia ligar a televisão. Some-se a isso as vendas de todos os meus ídolos de infância por preço de banana para reforçarem os maiores clubes de São Paulo, Minas, Porto Alegre ou Goiânia: Bebeto, Marcelinho, Zinho, Gaúcho, Charles, Júnior Baiano, Gélson, Paulo Nunes, Wilson Gottardo. A aposentadoria de Júnior. As compras de jogadores que a memória teima em não esquecer: Dill, Dimba, Eliel, Marcos Denner, Paulinho Mentira, Walter Minhoca e Valentim.

Isso sem falar em presidentes que surgiam sabe-se lá de que quarteirão do inferno: Luiz Augusto Velloso, Edmundo “não sou um bandido comum” Santos Silva, Patrícia “Bonde do Amor” Amorim. Anos de Maracanã com suas filas regadas a cassetetes policiais e gás de pimenta. Tratamento vip da sempre gentil política militar fluminense, com frases de boas vindas do nível de “hoje vocês não vão ser revistados, porque vocês vão se matar vocês mesmos” (a repetição é fidedigna à linguagem oral ouvida naquele Flamengo e Botafogo), ou do guardião da paz que me respondeu, quando pedi meu canhoto de ingresso na final de 2009, “tu tá de sacanagem, né? Vaza!”.

Apesar de tudo isso, o Flamengo sempre foi um refúgio. Em jogos vazios do primeiro turno do estadual, sentava-se à arquibancada, cerveja (legal ou clandestina) à mão, para conversar sobre qualquer assunto, tendo diante de si o maior telão em HD do futebol mundial. Em jogos importantes, o calor de se estar junto empurrando um time que teimava em ser surdo, o que nos demandava mais energia, até que o oxigênio faltasse à cabeça.

A partir da gestão Bandeira de Melo, parecia que tínhamos um norte qualquer. As ameaças de rebaixamento haviam se despedido, e os títulos viriam em algum momento. E vergar as cores rubro-negras nunca, nessa história toda, deixou de ser motivo de orgulho. Mas 2019 deixa alguma ponta de receio.

Em 2019, as peças que o Flamengo apronta não são como aquelas descritas acima. Aquelas são do esporte. O choro com a bola na trave ou a saída de um grande ídolo fazem parte dessa coisa estranha chamada futebol. Aos poucos ficamos calejados com isso. No início achamos que são traições. Depois, o tempo apaga. O que o tempo vai teimar em pagar é o Flamengo (a atual gestão, não o verdadeiro espírito Flamengo) fazer o que tem feito. A forma como tratou o caso dos 10 atletas mortos no Ninho do Urubu. A subserviência ao governador (sic) do Rio de Janeiro. A negativa a uma nota oficial em homenagem a Stuart Angel, ex-remador do clube torturado e assassinado nas dependências da Marinha. A tentativa de esquecimento de Marielle Franco, torcedora do Flamengo. A quarta-feira.

Nos anos Médici, o “monstro da Lagoa”, torcedor do Grêmio, o Flamengo também foi usado para fins políticos, mas lembremos, o Brasil passava por uma ditadura (ou movimento, como prefere Dias Toffoli). As ditaduras/movimentos gostam disso. O Colo-Colo, clube mais popular do Chile, foi apeado pelos generais pinochetistas. Na Argentina, a seleção foi usada pela Junta Militar para demonstrar aos presos políticos que o país estava feliz. Aqui, foi o Flamengo. A cada gol rubro-negro, erguia-se o espectro da tortura e dos assassinatos a saudar o próprio ego.

O Flamengo há de ser maior do que isso. Hoje, com as redes virtuais, temos prontas reações. A minha, humildemente, é de apenas dizer que, por ora, podem usar os símbolos nacionais como babador ou guardanapo o quanto quiserem, mas peço-lhes respeitosamente que tirem as mãos das cores rubro-negras. Se possível, renunciem à direção do clube. Nem a atual diretoria, nem o atual presidente vão usar o Flamengo como anteparo para seus desmandos e devaneios. A reação há de vir, mesmo que isso pareça uma quimera individual. Saiam das arquibancadas do clube mais popular do Brasil, mas, como diria o samba de Moreira da Silva: saiam pelos fundos, porque pela frente tem gente.

João Dulci é Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e e Políticos (IESP-UERJ) e Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Colabora com a Escuta.

** Fonte da imagem: Jorge William 12/06/2019 / Agência O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/em-defesa-de-moro-bolsonaro-diz-que-legado-do-ex-juiz-contra-corrupcao-nao-tem-preco-23736753&gt;. Acesso em: 16 jun 2019.